Resnais trabalha como um romancista

Por Marguerite Duras

Nós realizamos dois tipos de continuidade em Hiroshima, Meu Amor. Uma que era a continuidade propriamente dita. A outra que era o que poderíamos chamar de continuidade subterrânea do filme.

Antes de rodar o seu filme, Resnais quis conhecer tudo, tanto da história que ele ia contar, quanto da história que ele não contaria, a dos personagens que nos interessavam. Ele queria saber tudo sobre eles: suas juventudes, suas existências antes do filme e também, numa certa medida, depois do filme. Com isso, fiz biografias dos nossos personagens. Resnais, a partir dessas biografias, os abordou pela imagem como se ele desse continuidade, por essa mesma imagem, a um filme que já existia da vida anterior dos personagens.

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Uma vez feito isso, uma vez estabelecidas as coordenadas sociais e psicológicas dos personagens, uma vez cercados esses personagens, pelos seus passados e pelos seus futuros, Resnais exigiu que fosse estabelecido o porquê do interesse que tínhamos por eles. Outro trabalho novamente ligado à continuidade subterrânea do filme.

Geralmente, os cineastas se perguntam se a história que vão contar pode interessar ao público. E Resnais, ele próprio, perguntou-se se a história que iria contar o interessava, a ele, Resnais. Nos encontrávamos todos os dias, e todos os dias Resnais me falava em que pé estava, se o desenvolvimento da história era do seu agrado ou se não era. Nunca, nem sequer uma vez, eu o senti preocupado com o que iria agradar, ou não, ao futuro público do seu filme.

Resnais sabe extraordinariamente bem o que ele quer fazer, como e porquê quer aquilo. Antes de conhecê-lo e de trabalhar com ele, eu não podia imaginar que alguém, sendo cineasta, pudesse estar tão “sozinho”. Resnais trabalha como um romancista.

Além das coordenadas sociais dos personagens, da justificativa da história, Resnais me pediu para fazer uma espécie de pré-comentário das imagens que ilustrariam essa história. “Me fale como ela vê Nevers nas suas lembranças. Me fale como ela vê a bola entrar no porão”, dizia Resnais. Então, inventamos Nevers como ela deve vê-la do outro lado do mundo. E a entrada da bola perdida nessa Nevers inventada.

O trabalho que fiz nessa continuidade subterrânea do filme é pelo menos tão importante quanto o que fiz na continuidade propriamente dita. O que é mostrado é uma dublagem do que não é mostrado. Por quê? Porque Resnais quis, mostrando somente um aspecto entre os cem aspectos de uma mesma coisa, estar ciente do seu “fracasso” de somente poder mostrar uma de cem. Ele sempre, eu acho, se referiu a esse drama, por excelência, inevitável… Resnais sabia o que ele queria: ele me provocava e eu respondia num sentido bem dele.

Image et Son nº 128 (setembro de 1959); esta versão foi publicada no livreto que acompanha a primeira versão em DVD de Hiroshima, Meu Amor lançada no Brasil (Aurora DVD).

Veja também:
Mesa redonda da Cahiers du Cinéma sobre Hiroshima, Meu Amor

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