Quando questões políticas atropelam as opiniões de um júri (e como Wajda ganhou a Palma de Ouro em Cannes)

Nenhum produtor ou diretor me procurou para pedir nada. Cheguei a subir no elevador do hotel Carlton com John Boorman, em competição com seu filme Excalibur, um de meus preferidos. Conversamos sobre o tempo, a praia, a corrida de Fórmula 1 em Mônaco na semana seguinte, e nem ao menos nos referimos ao festival. As únicas “pressões” que receberia seriam comentários exaltados e inocentes de dois jornalistas amigos meus – Robert Benayoun, que defendia O Portal do Paraíso, o filme maldito de Michael Cimino; e Michel Ciment, torcedor de Excalibur.

Não havia muita ansiedade no ar, o festival já começara com um favorito imbatível, que ainda nem ao menos tinha sido visto por alguém. Tratava-se de O Homem de Ferro, de Andrzej Wajda, mestre histórico do cinema polonês que nos tinha encantado, tanto quanto a nouvelle vague, no final dos anos 1950 com Kanal e Cinzas e Diamantes. Nesses filmes, Zbigniew Cybulski, seu jovem herói, era um  James Dean com consciência política, tudo o que sonhávamos ser.

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A luta do sindicato Solidariedade contra o domínio soviético na Polônia tinha tomado as manchetes mundiais. O general Jaruzelski, da linha dura comunista, tinha assumido o poder com um golpe militar, sob o pretexto de evitar a invasão soviética. Lech Walesa, líder católico da revolta popular, encontrava-se na cadeia. Artista e intelectuais estavam sendo presos, livros e filmes eram proibidos. Além de conhecido opositor do regime, Wajda era amigo pessoal de Walesa.

O Homem de Ferro fora proibido na Polônia e não podia ser exportado para fora do país. Em solidariedade à luta contra a ditadura polonesa, Gilles Jacob selecionara o filme sem vê-lo e agora esperava que uma cópia chegasse à França antes que o festival terminasse. Ninguém podia garantir se isso iria acontecer, mas estudantes de toda a França se deslocavam para a Cotê d’Azur, a fim de promover manifestações de apoio aos democratas poloneses, pela liberação do filme e libertação de Walesa.

O festival estava quase no fim, quando Gilles Jacob anunciou que Wajda havia conseguido escapar clandestino da Polônia e chegaria a Cannes com a cópia de O Homem de Ferro debaixo do braço. O público do festival recebeu a notícia com euforia, celebrando a vitória parcial da democracia na Europa dividida. Mas, quando o filme foi enfim exibido, a grande maioria de jornalistas, cineastas e cinéfilos sofreria grande decepção. O Homem de Ferro não estava à altura da obra de Wajda. Ninguém tinha coragem de dizer ou escrever isso, o próprio júri se sentia inibido diante da importância política dos acontecimentos que envolviam o filme.

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Não foi necessária nenhuma grande conspiração para descobrir que era impossível não dar o prêmio para O Homem de Ferro. O júri e o próprio Festival de Cannes seriam massacrados pela opinião pública mundial se isso não acontecesse. Só Ellen Burstyn [integrante do júri] chegou a reagir, preferindo dar a Palma de Ouro a Carruagens de Fogo, filme inglês de Hugh Hudson, que ganharia o Oscar no ano seguinte. A atriz foi contida por longa e hábil conversa com Carrière [Jean-Claude Carrière, também integrante do júri], que lhe explicaria direitinho o que estava acontecendo.

Carlos Diegues, cineasta, em Vida de Cinema – Antes, Durante e Depois do Cinema Novo (Editora Objetiva; pgs. 479-481). O brasileiro fez parte do júri da competição do festival em 1981, quando Wajda levou a Palma de Ouro (confira aqui todos os vencedores). Acima, Wajda, ao lado do astro Sean Connery, com a Palma; abaixo, nas filmagens de O Homem de Ferro.

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