Por Barbara Leaming
Sabendo perfeitamente que precisava começar sem perda de tempo uma nova produção, Orson teve que reconhecer que It’s All True não era um segundo projeto viável. A essa altura não podia arcar, de jeito nenhum, com outro deslize tipo Heart of Darkness e logo viu que levaria alguns meses para amadurecer por completo as ideias ainda em gestação. Decidido a continuar preparando It’s All True, lançou-se a outro projeto bem mais prático e que poderia ser iniciado imediatamente. A atração que sentia pelo romance The Magnificent Ambersons (Soberba), de Booth Tarkington, tinha vários motivos. Antes de mais nada, já examinara a obra quando o Mercury irradiou uma adaptação em 1939. Mas embora achasse que era o melhor livro de Tarkington, seu interesse não foi só literário; Orson tinha uma forte identificação pessoal com a história porque desconfiava que para criar o personagem do inventor Eugene, fundamental para a trama, o escritor tivesse se inspirado em seu amigo Dick Welles (interpretado no filme por Joseph Cotten, amigo de Orson). O romance também lhe interessava muito por causa do relacionamento de Georgie Minafer com sua querida e desventurada mãe. George, aliás, é o primeiro nome verdadeiro de Orson, que se lembrava nitidamente que na última vez que viu Beatrice Welles, antes de morrer, ela o havia chamado de “Georgie Porgie”. Na cena do leito de morte de Isabel (em que a mãe fictícia ergue o corpo e senta na cama, procurando disfarçar a dor, tal como Beatrice também fez), o cineasta iria descobrir, e explorar, os sentimentos que ainda guardava na memória. Para desempenhar esse papel, Orson convenceu Dolores Costello, ex-mulher de John Barrymore, a voltar ao cinema. (Infelizmente, a maquiagem pesada que os estúdios usavam antigamente causou graves danos à pele da atriz, a ponto de parecer quase carcomida, trazendo um problema diário – por ironia – aos maquiadores profissionais de Orson.)
Embora houvesse interpretado o personagem de Georgie no rádio e estivesse com apenas vinte e seis anos, Orson sabia que dava impressão de ser muito velho para o papel de aluno de faculdade. Talvez fosse possível, se pudesse emagrecer bastante, mas como isso estava completamente fora de cogitação, outro ator, até então simplesmente “mocinho” de filmes de faroeste, Tim Holt, foi escolhido. O detestável Georgie, sinistro alter ego de Orson, é a versão intensamente cáustica de sua própria compulsão para comer e obsessiva preocupação consigo mesmo. Só um artista com muita capacidade de autocrítica poderia nos dar uma autocaricatura tão impiedosa e grotesca.
– É que nem Dallas – diz Orson, referindo-se ao odioso J. R. -, em que a gente fica fascinado para ver o que vai acontecer com o filho mimado!
O tema do pirralho que ganha o “castigo merecido” tinha ressonância especial para Orson no momento exato em que pelo menos metade da população de Hollywood parecia estar esperando que sofresse o mesmo destino. Ocorreu-lhe então que não existia meio mais apropriado e irônico de começar seu segundo filme do que narrando a história da punição exemplar de Georgie Minafer, para mostrar que sabia muito bem o que boa parte do público viera assistir.

Antes de iniciar o roteiro, Orson achou aconselhável conseguir primeiro a aprovação de Schaefer e levou-lhe a gravação do programa radiofônico do Mercury, feito em 1939. E hoje lembra que, depois de escutar uns cinco minutos, Schaefer ferrou no sono, só acordando quando o disco já estava perto de terminar.
– Ótimo, faça o filme – disse a Orson. Mas as condições em que fez Soberba foram totalmente diversas das de Kane. Desta vez o filme não estava incluído no famoso contrato que lhe permitia o controle artístico absoluto. Soberba e Jornada do Pavor resultaram do acordo inteiramente novo e separado que firmou com a RKO. Tendo concordado em fazer um filme de graça para poder se afastar de Hollywood em 1939 e não podendo receber nenhuma porcentagem dos lucros enquanto Kane não ressarcisse o estúdio do meio milhão de dólares nele investido (o que parecia extremamente improvável na conjuntura atual), Orson só tornaria a ganhar dinheiro de novo quando produzisse um terceiro filme nos termos do contrato anterior. Por isso assinou outro (desfavorável), comprometendo-se a dirigir Soberba e produzir Jornada do Pavor; agora não precisava mais trabalhar como ator, e nem mesmo como diretor, nos projetos propostos e também abdicava do privilégio tão disputado de dar a última palavra sobre a montagem final (facultando, por conseguinte, à RKO o direito legal de assim proceder em relação a Soberba – como terminou acontecendo).
O fato de Soberba ter sido feito sob um novo contrato é frequentemente esquecido e no entanto indispensável para a perfeita compreensão do que aconteceu com Welles em Hollywood. O próprio Orson é o primeiro a lembrar o absurdo da acusação tantas vezes repetida de que os produtores do cinema americano passaram a boicotá-lo por ser “incontrolável”.
– Existe muita gente disposta a perpetuar essa falácia – explica hoje -, e o mais irônico é que Cidadão Kane, o único filme em que me deram carta branca, foi onde menos me controlaram.
No contrato novo, Welles não teve outra alternativa senão renunciar ao controle absoluto que lhe permitiu a realização dessa obra-prima. Embora à primeira vista a concessão talvez parecesse pouco importante, o direito do estúdio à montagem definitiva faria mais tarde enorme diferença.
Trecho de Orson Welles – Uma Biografia, de Barbara Leaming (L&PM Editores; pgs. 224-226). No cabeçalho e nas fotos abaixo, vemos Orson Welles em ação e com membros de seu elenco, além de atores isolados ou com o cineasta, como Agnes Moorehead (no chão), Tim Holt (na imagem em cores, com Orson), Joseph Cotten e Dolores Costello (dançando).



RECEBA NOSSAS ATUALIZAÇÕES: Facebook e Telegram

Veja também: Soberba, de Orson Welles