Nas brigas e confusões, bebedeiras e amostras do homem mulherengo que é, Freddie Quell questiona seu mestre sem dizer nada. É como se insistisse em ser o animal que o outro não aceita ser – e não aceita que ninguém seja. Para Lancaster Dodd, o homem é superior, iluminado, dono de vidas passadas, na Terra há trilhões de anos. Não um animal.
Em Freddie, o homem é vagabundo e desordeiro. Após um evento-limite, algo que move as estruturas do mundo inteiro, a Segunda Guerra Mundial, a ele é dado o tempo de paz, o tempo para que se enquadre e seja alguém. Em O Mestre, não sabemos ao certo se o desajustado nasce no tempo em que é obrigado a se ajustar ou se sempre foi assim.
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Os sinais de sua liberdade, no início, são dados após o fim do conflito no Pacífico, contra os japoneses. Vemos ali um homem estranho enterrado sob um capacete de metal. Um homem escondido, depois liberto – liberto em excesso. Sobre o coqueiro, sobre a escultura de areia de uma mulher (na qual simula sexo), perto das ondas do mar enquanto se masturba.
Depois da guerra não vem a bonança: de emprego em emprego, Freddie não se enquadra. Primeiro como fotógrafo de uma loja chique (na qual briga com um cliente), depois como empregado de uma plantação de repolho (na qual é acusado de envenenar um homem e é obrigado a fugir). Pela noite, sem rumo, enxerga o brilho de um barco. Enquanto sobra escuridão para fora, dentro há luz, as pessoas dançam e se divertem.
Não vemos o que ocorreu a Freddie nessa noite de festa. Ao acordar, ele é avisado por alguns tripulantes que fez o que sempre fez: bebeu, brigou. Seu futuro mestre espera-o. Não há pompa. Há palavras exatas, força em expressões. Há a segurança de quem sabe que lidera um rebanho, que o barco luminoso entre a escuridão da noite significa algo, sobretudo a alguém – aos muitos como Freddie – que vagou à deriva, na escuridão sufocante.
O diretor Paul Thomas Anderson celebra o encontro dos diferentes e, em certa medida, semelhantes: o desajustado arrebanhado por uma espécie de seita, de religião, chamada de A Causa; o líder dessa mesma seita, Lancaster Dodd, que em momentos sai da personagem que precisa representar e quase descamba ao animal que o outro lhe impõe.
A seita será algo que dá significado a Freddie à medida que esconde Lancaster. Não que o primeiro – nem o segundo – compreenda com profundidade o que é aquilo. Tampouco Anderson deseja que compreendamos. O filme baseia-se na relação de opostos que se tocam, em um oceano de gestos e malícias que deflagram o espírito. Entre a total inconstância, o caos, o que esperamos dos loucos, a ordem é almejada. Eis o sentido da religião.
O barco servirá de metáfora, a certa altura, para Lancaster explicar as viagens no tempo – o acesso às vidas passadas, para que assim os seres humanos vençam seus problemas – promovidas pela Causa. A um homem que questiona suas ideias, ele afirma que viver – uma ou mais vidas – é como viajar em um barco. Não se vê o que ficou para trás, “mas não quer dizer que não esteja lá”. Mais de uma vez, e não por acaso, o diretor mostra o que fica para trás: a água que se espalha e a espuma criada após o corte.
Esses homens erráticos – animais que se divertem e viajam o tempo todo, por cidades diferentes, montanhas e desertos – completam-se. Outra vez Anderson aposta nas relações estranhas, em sua dependência, na loucura que em momentos dá lugar ao afeto, a exemplo da relação entre pai e filho em Sangue Negro e entre o casal de Trama Fantasma.
Freddie, interpretado por Joaquin Phoenix, é um animal assumido, por isso mesmo autêntico. O boçal que não encontrou o caminho de casa, que foi à guerra sob a crença do heroísmo ou apenas para ter certeza de que amava alguém, ou para se desviar dos traumas causados por sua mãe, internada em um hospício. Um homem que expressa sua ira sem antecipar nada, que às vezes parece estar se divertindo, que, no fundo, não quer ser o pior entre nós. A Causa torna-se sua busca pelo sentido que, passagem após passagem, continua a escapar.
Na pele do gigante Philip Seymour Hoffman, Lancaster procura em homens como Freddie sua matéria-prima: a constatação de que a natureza humana está a milhas de distância de suas ideias sobre a retidão do homem. Por consequência, encara uma desagradável realidade. Freddie viajou o mundo todo para não se encontrar; Lancaster fez o mesmo para escrever livros, teorias, tornar-se um guru e ver no outro seu fracasso, o resumo do caos.
(The Master, Paul Thomas Anderson, 2012)
Nota: ★★★★★
AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

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