Há um cadáver na propriedade do príncipe Don Fabrizio Salina (Burt Lancaster). O vento de fora invade sua casa. A mudança é indicada por alguns, pelo falatório que vem do quintal, pelas cartas, pelo movimento do sobrinho que quer se juntar aos homens de Garibaldi. “É a revolução”, diz o padre, fiel seguidor do príncipe, vivido por Romolo Valli.
Para Don Fabrizio, os movimentos não significam muita coisa. “Só uma imperceptível substituição de classes. A classe média não quer nos destruir, quer só tomar nosso lugar, com boas maneiras”, afirma ele, protagonista que quase tudo observa, cuja oração, no início, é interrompida pelos ventos que trazem a morte, o barulho, a renovação e a unificação de territórios e, no fundo, como diz o mesmo homem, só reproduzirão “acomodações”.
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Se há um filme que consegue expor com perfeição o nascimento do modo de fazer política na modernidade e, ao mesmo tempo, materializar o homem e suas angústias, este é O Leopardo, de Luchino Visconti. Claro que parte dos méritos dessa exposição – a do conteúdo político – já estava no livro de Giuseppe Tomasi di Lampedusa. A Visconti coube reimaginar o período, retirar do livro o necessário e dar movimento a uma pintura em momentos distante e irreal, em outros próxima e capaz de revelar a carne, com a fotografia de Giuseppe Rotunno.
À medida que a história parece não o atingir em cheio, Don Fabrizio ressente-se ao observar os mais novos e, por extensão, sua própria morte: a chegada de novas pessoas, de novos grupos e comportamentos indicam sua saída de cena. A nova classe que assume as rédeas do poder veste-se bem e tem algo vulgar que não escapa aos seus olhos, mesmo sabendo que essa mesma vulgaridade pode guardar a beleza que seduz o homem de carne de osso. O poder muda de mãos e não muda. São as pessoas que mudam.

Os leões e leopardos dão lugar aos chacais e às hienas. Todos matam, todos vivem em uma mesma selva. Em jogo, a maneira de se portar, a beleza particular a cada um, o olhar do homem de antes à podridão que se anuncia. A contemplação da morte – a beleza da morte – move O Leopardo. É um dos temas favoritos de Visconti e pode ser visto também em Sedução da Carne, Morte em Veneza e Violência e Paixão.
No fundo, toda arte reproduz algo morto. É o complexo que envolve a personagem viscontiana: ao mesmo tempo em que toda a beleza do mundo anuncia-se em Tancredi (Alain Delon) – que nasce como reflexo no espelho de Don Fabrizio, que enxerga as formas que perdeu ou almeja – e na amada deste, Angelica (Claudia Cardinale), o príncipe encara seu próprio fim e, depois do baile que sela a mudança do poder, no qual Tancredi anuncia a vontade de se candidatar a um cargo político, vaga sozinho ao nascer do sol.

O velho leopardo espanta-se com a liberdade das meninas que pulam – todas bem-vestidas – sobre uma cama ao centro de um salão, no mesmo castelo em que ocorre o baile, e se irrita com o riso desenfreado da futura mulher de seu sobrinho (Cardinale), logo após ouvir uma história com toques sórdidos do próprio Tancredi em seus dias de garibaldino, quando ele e outros homens invadiram um monastério em busca de noviças.
Não demora e a roupa vermelha do revolucionário dá lugar à farda azul militar: Tancredi, o arrivista, muda de acordo com as necessidades, atrás do novo mundo político ao qual Don Fabrizio – convidado a se tornar senador – recusa-se a mergulhar por inteiro. Universo de nascentes burocratas e poderosos que se alimentam nas bordas da monarquia.
Nem todos querem mudanças. Don Fabrizio sabe que são inevitáveis. Ele morre com sua classe. Ele observa o quadro La Morte del Giusto, de Greuze, como observamos o filme de Visconti: o espectador da morte somos nós, e estamos no interior do príncipe. O quadro-cinema é posto em movimento em inúmeros momentos, e nos parece ainda mais gritante quando as personagens estão distantes, em planos gerais ou de conjunto.

Em passagem específica, ao fundir dois planos, a montagem de Mario Serandrei sugere a transformação da Sicília: o quadro de seres desconhecidos vistos a distância, na pequena cidade encravada na paisagem, cultivando a terra, transforma-se no luxuoso baile em que senhores e senhoras da região conjugam-se aos novos poderosos, à burguesia ascendente, em que príncipes dançam com filhas de exploradores de terra.



Para representar a visão do velho leopardo, Visconti chega a utilizar a câmera subjetiva no momento em que Tancredi, na companhia do conde Cavriaghi (Terence Hill), apresenta um general (Giuliano Gemma) ao tio. Os três recém-chegados, seguidores de Garibaldi, encaram a câmera. Em seguida, com a entrada na sala, Tancredi volta-se novamente ao tio – ou seja, à câmera – e sorri. O flerte que se retira desse efeito – nós no interior do homem que observa, que recepciona – beira aqui o desejo físico. Mesmo com todas suas reservas, Don Fabrizio compreende que aquele é um caminho sem volta: os belos rapazes que foram ali para ver os afrescos no teto de uma sala terminam por seduzi-lo, a começar por Delon.


Nunca saberemos o que passa pela cabeça de Tancredi: o filme é a visão do outro, do velho, do passageiro que não evita flertar com o novo mesmo ciente de seus problemas. A aventura proposta pelo sobrinho, no início, é própria da juventude. Tancredi começa como um típico revolucionário e termina como burguês e futuro político de carreira.
Não há um quadro sequer que não possa ser justificado. O Leopardo libera a impressão de imobilismo, do tempo que custa a correr, dos quadros que não nos permitem imaginar o que há para além de seus limites, o que está fora de campo. Tudo é tão concentrado e perfeito para estar que não conseguimos pensar no que transborda. Tudo o que é visto é dado, quase tudo o que é sugerido compreendemos como parte dessa grande pintura realista, em momentos barroca, sobre campos, cidadezinhas e palácios.
A poeira vinda das ruas, de todos os lados, cobre as faces da família recém-chegada a Donnafugata, momento em que os homens de Garibaldi fechavam estradas e tomavam cidades. Na igreja, apartados do povo, os membros da família Salina estão cobertos por partículas brancas que os tornam mais velhos, peças de um museu esquecido, seres petrificados pela ação do tempo, imóveis, belos mas mortos.
No início, com o movimento das cortinas pela ação do vento, pela oração em família interrompida pelos gritos dos criados que anunciam a morte de um soldado, temos o corte lento que atravessará o filme todo: essa sequência de abertura é tão representativa quanto a do baile, que ocupa quase um terço da obra. As novidades de fora – os ventos da revolução, da transformação inevitável – interrompem, por alguns minutos, o que aqui melhor define a alienação e o imobilismo: a Igreja. O príncipe sabe que o poder mudará de mãos, que outra classe bate à porta, e que a Igreja – servil aos poderosos como o padre que lhe ajuda a secar as costas quando sai do banho – continuará ali, fincada entre os que ditam as regras.
(Il gattopardo, Luchino Visconti, 1963)
Nota: ★★★★★⤴
AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Veja também: O Leopardo, por Antonio Moniz Vianna