Mimetismo, de Krzysztof Zanussi

O professor mais velho explica ao mais jovem que não se escapa às amarras do sistema. O outro tenta se desvencilhar, desconversa, ainda coloca seu idealismo à frente. Em Mimetismo, de Krzysztof Zanussi, em algum momento o mais jovem terá de se dobrar à forma que o mais velho – mais adaptado, conhecedor da natureza ao redor – propõe.

Essa natureza pode ser descrita como conformista, cínica, ou como a forma de se jogar um jogo: para se adaptar ao local é preciso renunciar a algo. O filme dilui aos poucos o que atenta contra os valores de um homem, o protagonista, a mesma substância da qual o outro homem serve-se, da qual, já compreendeu, não pode viver sem.

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Ambas as personagens – na camuflagem ora discreta, ora gritante e um tanto reveladora – convivem com seus alunos em um verão nem tão quente nem tão frio. Um verão para mergulhar no lago com dificuldade, para ficar perto da fogueira e fugir do frio noturno. Verão em que os alunos de linguística preparam seus relatórios de conclusão de curso. Entre os estudos, ainda encontram tempo para algumas escapadas.

O professor mais jovem é o protagonista. Ele tenta ser justo com os estudantes. Terá de aceitar, inclusive, um relatório após a data de entrega. Terá de abrir uma exceção. Jaroslaw (Piotr Garlicki) não se embrenhou no sistema o suficiente para se ver desalmado, uma peça do todo, a exemplo do aparente antagonista, Jakub (Zbigniew Zapasiewicz).

Inclinado à fotografia, o mais velho observa, no início, o movimento dos pássaros, a forma como se agrupam, esse destino natural de se seguir um grupo e se deixar adaptar. Ao idealista, entusiasta (ainda) das grandezas humanas, o homem precisa destoar da natureza que impõe o efeito manada. A nós, seres pensantes, é dada a autonomia.

Essa natureza vista pela lente, tão próxima, em nada combina com o ambiente em questão: o espaço universitário do livre pensar, das descobertas, dos estudos, no qual a afirmação do homem e de suas diferenças em relação aos outros animais deveria se impor. Zanussi, com roteiro de sua própria autoria, mostra-nos que, em sua fraqueza, em sua estranha forma de não escapar ao grupo e aos seus vícios, o homem tem sua moral corrompida.

Jakub é esperto, dono das palavras certas, alguém que tenta fazer o mais jovem compreender como funciona o sistema ao qual ele integrou-se. O que se deu no ano anterior dar-se-á de novo e de novo. Assim segue o grupo que escapa à natureza para viver o prazer sexual – talvez porque apenas este ainda seja capaz de defini-lo, à contramão de debates, relatórios, embates com professores, para se constatar que alguns mestres apenas batem ponto.

Para Zanussi, a missão de homens como Jakub é provar a previsibilidade – ou a fraqueza, se assim quisermos – de seres como Jaroslaw. Em algum momento, o segundo deverá ceder à natureza destrutiva, apelar à violência como forma de apagar o fantasma que o persegue, o homem mais velho que conhece as menores dobras de um labirinto habitável.

Para resolver um problema com os alunos, o mais velho mente. “Imagine um mundo sem a mentira”, ele diz ao professor mais novo. Em livre sarcasmo, afirma o óbvio que o mais idealista tenta negar: a mentira é necessária, está na base das nossas relações. E ainda provoca o opositor: “Não vai me dar um sermão sobre sua superioridade moral?”.

Se todos os homens, em algum momento, destinam-se ao conformismo, a agir segundo os vícios do sistema e a se fechar em grupos com respostas prontas, caem as estruturas em que alguns poucos ainda se equilibram. Gente como Jaroslaw. A crítica de Zanussi, diluída entre o universo prosaico, atinge em cheio uma sociedade intelectual, mas no fundo corrupta.

Animais podem ser vistos aos cantos: pássaros vivos e mortos, uma cobra, um gato e um cão pastor alemão. Fazem pensar na adaptação, no mimetismo, nas formas da natureza e em suas repetições, na necessidade de se agrupar – também nossa, é verdade – e que, segundo o professor mais velho, ajuda a aprender muito sobre nós mesmos.

Como recorda o danoso Jakub, “o conceito de Justiça raramente é encontrado na Justiça. Nas ciências naturais sequer é encontrado”. Talvez reste mesmo a selvageria, essa marca primeira, como parece apontar o talentoso Zanussi. Aos professores – o velho e o novo – fica a constatação, em manhã sem sol, à beira do lago, sujos e exaustos.

(Barwy ochronne, Krzysztof Zanussi, 1977)

Nota: ★★★★☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Veja também: O Homem de Mármore, de Andrzej Wajda

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