A Metamorfose dos Pássaros, de Catarina Vasconcelos

Até a morte da avó Beatriz, ou apenas Triz, o filme é feito com película 16mm. Desse ponto para frente, converte-se ao digital. Para a cineasta portuguesa Catarina Vasconcelos, à natureza – ou às naturezas – do cinema conjuga-se à das vidas mostradas na tela, as vidas de sua família, das pessoas que busca resgatar.

Essa passagem – da película palpável ao pixel do digital – reforça igualmente a ideia do hibridismo, do filme de inúmeros aspectos, dos recortes geracionais. O antigo álbum de fotos, em A Metamorfose dos Pássaros, dá lugar à imagem digitalizada que guardamos em nossos computadores. A memória segue a forma e revela o tempo.

RECEBA NOSSAS ATUALIZAÇÕES: Facebook e Telegram

O filme de Vasconcelos é uma experiência calcada em recortes. Um filme de memórias que muito deve a Alain Resnais, uma experiência íntima e ao mesmo tempo um avanço à natureza bruta – essa “religião” à qual a realizadora com alguma constância precisa se curvar para enxergar o mundo como ele é, sem retoques ou romantismo.

Aborda sua família. Parte da avó e de seus filhos, entre eles seu pai, Jacinto. A avó cuida da família, é a mãe que guarda as crianças, a casa, a terra, que nos revela a cultura do cuidado. O que é ser mãe – ou o que era em tempos passados. O avô está no mar: é o homem que escolheu o mundo, cujo ofício separou-o da mulher e dos rebentos.

O título é a perfeita conjugação entre natureza e cultura. Os povos antepassados, por desconhecerem a migração das aves e não conseguirem explicar a presença de diferentes espécies nas árvores que atravessavam séculos sem se mover, diziam que os pássaros passavam por metamorfose. Viam espécies diferentes e pensavam ver a mesma.

A cultura – e as mentiras que aprendemos a contar a nós mesmos, nossas crenças – sobrepõem-se à natureza, à ciência, às descobertas que aos poucos precisamos fazer. Para Vasconcelos, o passado – o de sua família, de sua linhagem – tem de ser tratado com respeito. É sua natureza – no corpo e na presença dos outros, nas histórias e nos tantos objetos que viram e não esqueceram mais, nas lendas que a criada da casa gostava de entoar.

Um filme-colagem, parte ficção, parte documentário, sobre algumas vidas, uma família, e sobre algo universal que depende da arte. Não apenas do cinema, essa conjugação de possibilidades e explorações, essa reencenação de algo não como foi, mas próximo – próximo demais – do que pode ter sido, esse feliz embuste que soa mais poderoso quando lida com planos em detalhe, passagens aparentemente furtivas, como golpes da memória.

A natureza é a “religião” da cineasta. Para revelar os outros – a cultura dos outros que inegavelmente a atinge, como a nós -, ela camufla-se atrás de espelhos. Em diferentes momentos, em meio às árvores ou perante o pai que lê o roteiro do filme, Vasconcelos está atrás de espelhos. Os objetos não servem aqui para refletir, mas para ocultar. O que refletem, no entanto, não permite que o autor simplesmente desapareça.

Eis o jogo dúbio que Vasconcelos encampa: tenta, atrás de um espelho, bloquear-se ou tomar distância à medida que expõe na tela suas raízes, ideias, formas, toda a delicadeza com a qual lida ao tomar esse álbum da memória. Não é nada fácil falar de si mesmo.

A certa altura, ao som de Bach, a diretora tenta levantar uma árvore caída. Um movimento para ressuscitar algo morto. O gesto e a cena fizeram-me lembrar de A Fonte da Donzela, ainda que Bergman lide com a morte e o luto e Vasconcelos prefira abordar a natureza como garantia da vida.

A mulher e a natureza são uma só. Da casa da mulher morta, de seus grãos, surgem plantas. A vida segue. Na casa de Beatriz, no passado, vemos penas de pavão e frutas sobre a mesa. As laranjeiras são prolongamentos de sua vida. A árvore que planta é ela, separada da água que levou o amado. Ao fim, Vasconcelos e o pai devolvem a árvore ao mar.

Filmes como A Metamorfose dos Pássaros negam a decupagem clássica e apontam ao aparente caos de nossas lembranças. Escancaram o que são. Vemos o filme. Como um quebra-cabeça, pede que encontremos sua forma sem que deixemos de enxergar, entre uma peça e outra, suas fraturas, suas mudanças bruscas, suas metamorfoses.

(Idem, Catarina Vasconcelos, 2020)

Nota: ★★★★☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Veja também:
Azor, de Andreas Fontana

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s