É tentador procurar pelas formas bressonianas enquanto se assiste aos filmes de Aki Kaurismäki. Como o realizador francês, o finlandês petrifica personagens, pede aos seus atores e atrizes que não exagerem na interpretação; é contido na maneira como constrói as relações entre personagens e as destas com o espaço ao redor.
São histórias tristes e, em grande medida, desprovidas de pathos, cortadas pela comédia ácida e o constante sentimento de se estar em um mundo ultrapassado, decadente, no qual as promessas do mercado não chegaram à massa consumista, ou chegaram apenas a uma casta de privilegiados. Bresson prefere o espírito pela concisão de seus modelos; Kaurismäki opera em sentido oposto: o vazio das personagens tem a ver com a mecanização do mundo externo, a condição repetitiva da vida proletária, o amargor de quem está à margem.
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Bresson fala-nos de uma religiosidade resistente e que leva os humanos a se debaterem, a se questionarem, sem deixar, em seus quadros, sinais para significados isolados; Kaurismäki volta-se a um mundo em que essa religiosidade esvaiu-se e pode, sim, instigar o espectador a pensar em um significado a partir de elementos vivos em um quadro. Ainda que suas formas guardem semelhanças, as intenções e os resultados são opostos.
Esse aparente vazio existencial em um meio dominado pelo dinheiro e pelas máquinas – essa exasperação pela falta de qualquer sentido espiritual – está ao centro da Trilogia do Proletariado de Kaurismäki, formada pelos filmes Sombras do Passado, Ariel e A Garota da Fábrica de Caixas de Fósforos. Em todos eles, os proletários veem-se sozinhos.
Em Sombras do Passado, o lixeiro Nikander (Matti Pellonpää) perde seu parceiro de trabalho (Esko Nikkari), que sofre um enfarte. O amigo sonhava em abrir a própria empresa de coleta de lixo. Tinha até um slogan pronto: “Confie em nós para cuidar de seu lixo. Existimos desde 1986”. O ano em questão é o mesmo em que se passa a história, o que chama a atenção de Nikander. O dono da ideia explica que a intenção é justamente essa: a empresa existe desde aquele momento, acabou de nascer, e o momento é suficiente para dizer algo.
É a ideia de Kaurismäki sobre o mundo atual: o homem está aniquilado pela imposição do momento. O que lhe antecede não interessa mais. Sua trilogia é sobre proletários vivendo – ou sobrevivendo – aos instantes impostos, ao fazer aqui e agora, às novas regras dos países modernos. Nikander desvia-se, arruma brigas e se interessa por uma das únicas pessoas que lhe estende a mão: a caixa de mercado vivida por Kati Outinen.
Nikander sabe que o sonho de sua classe é inalcançável: na Finlândia em questão, ele só pode trabalhar como coletor de lixo e teve de ver o amigo morrer em sua frente. A nova companheira é despedida do emprego, vive um tempo ao seu lado, encontra nova colocação em uma loja, flerta com seu gerente de classe média e se vê seduzida por outra vida.
O amor de Nikander não é correspondido. Na falta de outro, a moça decide ficar com ele. Agarram-se na falta de alguém, para ter alguém. O desespero silencioso presente nesse filme singelo repete-se em Ariel, no qual o protagonista pega a estrada após a mina em que trabalhava ser fechada e seu pai tirar a própria vida no banheiro de um restaurante.
O homem em questão é Taisto (Turo Pajala), a quem resta um carro antigo, um rádio antigo e a estrada coberta de neve. Com algum dinheiro no bolso, chama a atenção, é agredido e roubado; ao reencontrar o criminoso, ataca-o e é preso por agressão. Na cadeia, faz amizade com um homem condenado por homicídio, vivido por Pellonpää.
Aos que nada têm senão o instante, melhor escapar. A dupla foge da cadeia e se envolve em um assalto. Nas formas propostas por Kaurismäki em Ariel, trágico e cômico acomodam-se bem. Essa experiência leva-nos a pensar na crítica social que o diretor talvez tenha tentado imprimir, sem o mesmo êxito, na primeira parte da trilogia: apenas a farsa comporta uma explicação “plausível” para um sistema que empurra pessoas à criminalidade.
Sombras do Passado e Ariel terminam com outras viagens, com a fuga de suas personagens por barcos e ao indefinido – contraponto ao que pretende a última parte, a melhor e mais forte, A Garota da Fábrica de Caixas de Fósforos.
É, sem exagero, um dos filmes mais tristes já realizados. Pequena história sobre o cotidiano de uma menina, depois uma mulher. Uma menina que se torna mulher nos tombos que toma, nos confrontos que compra sem querer comprar. O mundo todo contra ela, o amante de ocasião e os pais, a vida encaixotada sob o aspecto pastel, com falta de luz.
No início, por longos minutos, vemos o movimento do metal, as máquinas que transformam toras de árvores em palitos de fósforo. A transformação celebrada com tamanha extensão é a súmula do que nos tornamos – justamente o que criamos. E o que fizemos para colocar alguém como nós em seu centro, a tal garota na linha de montagem.
O cotidiano repetitivo faz com que ela frequente bailes e bares. Ao lado de outras mulheres, Iris (Kati Outinen) é a única a não ser retirada para dançar. Essa é também a história de uma mulher rejeitada, cujo ressentimento, a certa altura, converte-se em desejo de vingança após conhecer um homem (Vesa Vierikko), engravidar e ser ignorada.
Ao se tornar um problema para os pais, é expulsa de casa. O companheiro de uma noite, por quem se apaixonou, pede que ela aborte. O que poderia ser um drama feminino conhecido torna-se, pelas mãos de Kaurismäki, um poderoso estudo sobre o silêncio e a solidão. Em suas falas mais longas, Iris fala para si mesma: ouvimos sua narração enquanto escreve uma carta para o amado, percebemos sentimentos verdadeiros, a forma terna.
Essa concisão nada bressoniana tem efeitos extraordinários à medida que Kaurismäki mostra-nos a anulação, pouco a pouco, da boa alma. A garota da fábrica de caixa de fósforos é, de repente, o monstro que não queremos enxergar. No entanto, somos levados ao engano: essa não é a história da inocente transformada em monstro, mas a da inocente que renuncia à bondade, ao amor, em uma sociedade que faz do melhor o pior, com veneno de rato à disposição e, neste caso, sem um barco para escapar.
(Varjoja paratiisissa, Aki Kaurismäki, 1986)
(Idem, Aki Kaurismäki, 1988)
(Tulitikkutehtaan tyttö, Aki Kaurismäki, 1990)
Notas:
Sombras do Passado: ★★★☆☆
Ariel: ★★★★☆
A Garota da Fábrica de Caixas de Fósforos: ★★★★★
AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Foto do cabeçalho: A Garota da Fábrica de Caixas de Fósforos
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Lágrimas de Esperança, de Martin Ritt