E o Vittorio?

Nas redes sociais, após se deparar com meu artigo sobre Roberto Rossellini, na semana passada, um leitor indagou: “E o Vittorio?”. Referia-se, claro, a outro importante nome do neorrealismo italiano, o cineasta e ator Vittorio De Sica, dono de obras fundamentais como Ladrões de Bicicleta. Impossível abordar o neorrealismo sem falar de autores como Rossellini, De Sica, Visconti, além do roteirista Cesare Zavattini.

No caso de De Sica, há uma nítida obra de metamorfoses – como seriam as de outros conterrâneos. Seu sucesso acontece primeiro como ator, dirigido por nomes como Mario Camerini, ainda sob o regime de Mussolini. Diferente de outros sistemas autoritários, o fascismo italiano não inclinou sua produção apenas a filmes de propaganda. À época, Vittorio Mussolini, filho de Benito, estava à frente da revista Cinema. Eram os tempos dos filmes de “telefone branco”, comédias que imitavam as norte-americanas, de cenários requintados, que ocultavam a realidade social. O telefone branco simbolizava o luxo.

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Vêm a guerra, os conflitos, o facismo sucumbe. De Sica chama a atenção com seu quinto filme como diretor, A Culpa é dos Pais, de 1943. Mas é com um filme nitidamente neorrealista, Vítimas da Tormenta, de 1946, sobre a situação de crianças marginais na Itália, que ele torna-se um nome incontornável no cinema mundial.

É verdade que o neorrealismo de De Sica é também o neorrealismo de Cesare Zavattini, roteirista e fiel colaborador, um dos cérebros por trás das ideias que moldaram o neorrealismo italiano. Ao falar desse momento, André Bazin não desprega De Sica de Zavattini, os quais, segundo o crítico francês em O que é Cinema?, “consideram a realidade humana como um fato social”, em um “realismo das relações do indivíduo com a sociedade”.

Bazin inclusive cita as diferenças entre o neorrealismo de Rossellini e o de De Sica e Zavattini: enquanto, para o primeiro, há um forte problema moral que guia as personagens, vistas com certa distância, para os outros dois trata-se de observar as personagens – das centrais às passageiras – cada vez mais perto, uma análise próxima do ser humano.

A obra-prima de De Sica é Ladrões de Bicicleta. A humanidade toda em um filme. A lupa posta sobre a Itália da época, no pós-guerra: um pai que tem sua bicicleta furtada e, por isso, fica sem emprego; um pai e um filho em jornada para tentar recuperar a bicicleta do criminoso. Apenas um “fio” – um crime, um fato social – que leva a uma das experiências humanas mais fortes já colocadas na tela do cinema.

De Sica e Zavattini ainda fariam mais: a rivalizar com Ladrões está Umberto D., sobre o idoso Umberto Domenico Ferrari, interpretado por Carlo Battisti, e seus dias de pobreza nas ruas e na pensão em que mora. A condição do velho homem a quem o Estado e a sociedade dão de ombros. A acompanhá-lo, apenas seu cão, que não aceita ser deixado para trás em cena dilacerante, ao fim, quando confirmamos que ao homem resta apenas o animal.

De Sica ainda faria filmes interessantes ao longo de sua carreira, como Quando a Mulher Erra, O Teto, Duas Mulheres e, mais tarde, o premiado O Jardim dos Finzi Contini, sobre uma família aristocrata durante a perseguição aos judeus na Itália dos anos 1930. Como ator, colaboraria com alguns dos mais importantes realizadores da época, como Max Ophüls (Desejos Proibidos), Mario Monicelli (O Médico e o Charlatão) e, claro, Roberto Rossellini (De Crápula a Herói).

Publicado originalmente no Jornal de Jundiaí em 19 de abril de 2023.

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Veja também:
O humanismo de Rossellini

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