Código Desconhecido, de Michael Haneke

A dificuldade de comunicação entre personagens insufla a intolerância e a violência. É a ideia central em Código Desconhecido, de Michael Haneke. Está presente em sua primeira camada, em situações e personagens variadas na Europa dos anos 2000, na qual assistimos ao cruzamento de diferentes realidades sociais, a conflitos, amores e rompimentos.

Detenho-me antes a essa primeira camada. No seu centro está uma atriz, Anne Laurent (Juliette Binoche), entre momentos de tensão e outros de felicidade enquanto faz um filme e vê seu resultado. Anne é namorada de Georges (Thierry Neuvic), cujo irmão mais novo, Jean (Alexandre Hamidi), não quer viver com o pai em uma fazenda.

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O pai, por sua vez, é um homem melancólico (Josef Bierbichler) que chega a presentear o filho com uma moto e, após seu desaparecimento, executa todos os bovinos de seu estábulo. O mal-estar é latente tanto nos pequenos momentos, em silêncios e movimentos repetitivos de pessoas como este pai, quanto em outros, maiores, como a execução dos animais.

Haneke não retira ninguém da mesma redoma, do mesmo tecido social, todos presos a passagens – quase todas, à exceção de duas ou três – em plano-sequência. Além das personagens citadas, também fazem parte da história – ou de seus pedaços – um garoto negro que dá aulas de música para crianças surdas e uma mulher romena, mãe de família, imigrante, que viaja a Paris em condições desumadas para mendigar nas ruas.

Anne, Jean, o professor de música Amadou (Ona Lu Yenke) e a mãe de família Maria (Luminita Gheorghiu) encontram-se no primeiro plano-sequência do filme, o mais longo, com quase dez minutos: Anne deixa seu apartamento e, na calçada, é chamada pelo cunhado. O garoto não quer voltar para a fazenda do pai. Seu irmão está fotografando em uma zona de guerra. Eles caminham, ela compra algo na padaria. O plano segue em travelling. Eles separam-se e Jean lança um saco de papel, seu lixo, no colo de Maria, que pede esmola. O ato é visto por Amadou, que também passa por ali e pede a Jean que se retrate com a mulher. Nasce o primeiro conflito. A polícia é chamada. A imigrante e o rapaz negro são detidos.

Todo o filme é fruto desse embate: é a entrada de Haneke na órbita de cada personagem, junção antes da fragmentação, maneira de nos dizer que todas essas pessoas, de locais e realidades distintas, circulam a poucos metros, dividem o mesmo oxigênio, podem se estranhar e trocar golpes, podem ser postas sob as forças da lei imediata, dos policiais que estão prontos para fazer valer a ordem, mesmo sem terem visto o que ocorreu de verdade. Drama de pedaços que Haneke leva-nos a enxergar em um só plano.

O que nos permite, por consequência, e ao longo de outros planos-sequência, chegar à segunda camada da obra, à sua forma – e, como na primeira, ao seu significado para o tal “código desconhecido”. O que impera nessa segunda camada é a estética. Haneke volta a questionar as imagens (do cinema, da televisão) como manipulação do real.

Com a quase ausência da montagem, o filme dá a impressão de expor e ao mesmo tempo esconder tudo: há sempre uma barreira de comunicação, o aspecto frio que closes, planos em detalhe e planos e contraplanos poderiam combater fosse este um filme “convencional”, com decupagem clássica. Haneke toma o caminho mais difícil e, ao optar por vários planos-sequência, une com perfeição a primeira e a segunda camada.

O “código desconhecido” é, ao mesmo, a forma radical que o cinema pode tomar, a dificuldade de compreensão entre pessoas – nas barreiras da língua, da cultura, da política, da simples relação a dois, do pai e do filho que pouco se falam – e, na indicação óbvia dada pelo roteiro, o código usado para o morador acessar seu apartamento.

Pela gramática de Haneke, não conseguiremos penetrar e nem saber por inteiro o que se passa com as personagens e, por isso, em algum ponto não teremos total compreensão das sequências – os detalhes em cena (como o que está escrito em uma carta misteriosa recebida por Anne), o que as pessoas enxergam fora do campo, o que ocorreu antes e depois do plano-sequência que parece ser um “pedaço” de um capítulo, de algo maior.

Eis um filme que arrisca nos afastar o tempo todo, que o tempo todo lança piscadelas sobre seus abusos e rompimentos, como nos momentos em que somos levados ao filme dentro do filme e ao uso da decupagem clássica: a sequência da piscina, em que pai e mãe divertem-se na água enquanto o filho está prestes a cair do parapeito do prédio ou, ainda antes, quando Anne grava outra cena do filme, momento em que sua personagem visita um apartamento e nos vemos subitamente dentro da câmera.

Nesse sentido, a decupagem clássica serve aqui ao rompimento, não à continuidade e ao conforto do espectador desacostumado à “monotonia” provocada pela ausência de cortes. Haneke só utiliza a falsidade se for para descortiná-la – como o faz, de maneira aberrante, no controverso Violência Gratuita, no uso da câmera subjetiva ou na famosa cena do controle remoto. Do contrário, em seus vários fragmentos do acaso impera a ideia do desconhecido, do inatingível, do inacabado, às vezes do furtivo e, por isso, do mistério.

É possível a existência de um cinema sem falsidade e manipulação? Depois da sequência de abertura, na qual crianças surdas participam de um jogo em que tentam adivinhar o significado dos movimentos de outra menina, talvez a pergunta a ser feita seja outra: seria possível mostrar essa mesma sequência em um único plano, sem cortes, uma vez que as crianças são surdas e não há som, uma vez que precisamos enxergar suas expressões e elas estão de frente para o palco, uma vez que muitas interagem ao mesmo tempo? Nesse caso, é como se o diretor dissesse que os planos e contraplanos são necessários. A montagem deixa de ser “proibida”. No fim, quando a criança surda volta a aparecer sobre o palco, já sabemos o que ela faz, o que está fora de campo. Não precisamos mais do contraplano.

(Code inconnu: Récit incomplet de divers voyages, Michael Haneke, 2000)

Nota: ★★★★★

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Veja também:
A estrutura e as filmagens de Código Desconhecido

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