O professor Battisti apresenta Umberto D.

Por Carlo Battisti
Tradução de Alexandre Cataldo

A ação de Umberto D. começa com a passeata dos aposentados; seus cartazes trazem os dizeres: “trabalhamos a vida toda”; “até os velhos têm que comer”; “justiça para aposentados”; “nós somos os párias da nação”; “aumentem as aposentadorias”. Todo o enredo gira em torno da miséria do protagonista, o protótipo do aposentado sem meios de subsistência adequados e, portanto, oprimido pela dureza da vida. É um filme de fundo social, de estilo realista, com intenções ideológicas claras e honestas, sem conotações políticas, mais temático do que narrativo por natureza. Portanto, não é uma história social, mas uma descrição; a diferença na forma dos dois tipos literários é imensa. Os aposentados não oferecem pistas chamativas e folclóricas, não constituem motivos esteticamente relevantes, como tantos elementos de filmes contemporâneos conhecidos por suas tendências estetizantes e explorados como documentários do atraso social de muitas regiões italianas. Constituem um problema social sentido em todo o mundo. Além do número muito grande de aposentados estatais, há quase dois milhões de aposentados da Previdência Social, cujos emolumentos anuais variam, enquanto escrevo, de 37.800 liras a 60.000 liras; os menos afortunados, portanto, recebem uma pensão igual a 2.900 liras por mês. Umberto D., que recebe do estado, ganha seis vezes mais, mas também não consegue pagar as contas, as dívidas o sufocam. Não se vive da mera esperança de que o tempo traga um ajuste da pensão ao custo de vida, prometido pela nova lei. Quase todos os dias, entre esses miseráveis, há um suicídio, alguém realmente que vai da miséria à auto-supressão. O problema, infelizmente, não é específico da Itália; é mais ou menos europeu. “Não falar disso na praça”, porque é tabu; “deixar pra lá”, porque é desagradável… não resolve nada; em todo caso, é de gosto questionável dizer que a dignidade nacional sugere fazer vista grossa ou, como propôs um senador, considerá-la imprópria para uma representação cinematográfica, para não passarmos no exterior como mendigos. Ao contrário, é preciso refletir sobre ele sem falsos pudores, estudá-lo como os médicos estudam as epidemias e as infecções sem preconceitos moralizantes, com plena liberdade de expressão. Seria desonroso não buscar uma solução social que pudesse aliviar o destino de tantos infelizes. A quem me perguntar, volto a afirmar que, para além e mais do que o desejo de uma experiência artística, o prazer de colaborar neste debate para a solução deste problema candente me trouxe ao cinema.

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Hoje em dia é ensinado até mesmo em nossas escolas secundárias que o conteúdo moral de uma obra de arte é independente do valor estético; não há sentido em discutir sobre uma afirmação óbvia. Mas é igualmente evidente que um filme social tem necessidades e premissas artísticas particulares. Em qualquer representação artística (literária, pictórica, cinematográfica) de um tema social, o argumento (desenvolvido sem polêmicas e diálogos sócio-políticos, que seriam estranhos e indiferentes às configurações artísticas), justamente na medida em que apresenta uma situação vasta, de desequilíbrio ou injustiça social, é apenas um exemplo. O autor seleciona e molda tipos capazes de representar um grupo social, geralmente apresentando humildes recorrências que na vida prática apressada e egocêntrica não são suficientemente captadas por nossa atenção. Na representação cinematográfica, onde a atenção do espectador é excitada por uma pluralidade de meios expressivos, esses detalhes formam o enredo da ação que se esgota externamente na sucessão de situações correspondentes a tantos motivos ou indícios da realidade ambiental. Estas situações podem envolver a representação de massas, como, no meu filme, a passeata dos aposentados ou a revolta dos doentes no hospital. Ainda que se limitem a episódios mesquinhos, são capazes de denunciar à nossa sensibilidade fatos desumanos ainda não superados pela nossa prática, como os episódios do canil municipal. Ou são quadros de situações de contrastes individuais ingenuamente encarados como consequências das inevitáveis oposições de interesses sociais como a luta impiedosa entre a senhoria e Umberto que, tendo dívidas, não encontra na lei a necessária proteção. Outros episódios são aberturas por meio das quais a ganância implacável da sociedade nos é apresentada de diversas formas e tonalidades, retratada em alguns tipos, que aos poucos vão desnudando o protagonista de seus recursos econômicos, reduzindo-o à impossibilidade de prolongar a luta pela existência; assim são, no meu filme, as cenas que representam a venda da última fonte de elevação espiritual de Umberto, seu vocabulário, e da única lembrança de um passado menos angustiado, seu relógio. O resultado da sucessão e do entrelaçamento de imagens particulares inseridas em um pano de fundo com uma visão ampla dos interesses humanos é o isolamento progressivo do protagonista da sociedade. Após a experiência de Umberto no hospital, as cenas de massa desaparecem ou são apenas insinuadas; o dormitório público apresenta-se encurtado, com um exterior em que agiganta a lúgubre tristeza da entrada envolta num silêncio desesperador, com alguns pobres desamparados que sobem lentamente a interminável escadaria. A expulsão do protagonista de seu quarto, excluindo Umberto D. da vida social normal, precipita a catástrofe, criando o epílogo do drama final da solidão. Da criada, a única criatura humana que demonstrou simpatia e compreensão pelo pobre Umberto, o protagonista se despede no final do filme. Começa a corrida para a morte. A emoção do drama é artisticamente determinada por essa prevalência lenta, mas inevitável, da solidão iminente, do silêncio social glacial sobre os episódios de massa que na primeira parte tinham a função de criar uma tonalidade ambiental ao traduzir fatos sociais em imagens que também afetam a aventura pessoal de Umberto.

A fragilidade do enredo quanto às experiências pessoais de Umberto é sanada pela robusta e lógica inserção no quadro mais amplo da representação realista de um grupo social deprimido, que é captada em seu tom menor, infinitamente triste. Algumas repetições de situações, como as várias tentativas de venda do relógio, as sucessivas ofertas de pagamento em prestações do aluguel vencido, correspondem, sem dúvida, a situações reais que são admissíveis na sua repetição mesmo na vida real. Não devem dar ao espectador a impressão de momentos de atraso, de mera espera entre as cenas dominantes; muito menos são jogos cerebrais voltados para uma geometria estilística. Sua função técnica é destacar; seu propósito é sublinhar, reforçando ou aprofundando poeticamente, momentos que evidenciam as causas do afastamento do protagonista do meio social. São pouquíssimos os planos em que a figura de Umberto não aparece ou pelo menos não contribui para esclarecer uma situação; ou são concomitantes à ação principal, como os episódios que se referem à infeliz empregada natural de Abruzzo (e então tem-se a impressão de dois trilhos paralelos por onde passam lado a lado dois bondes), ou estão em um certo sentido em lados opostos, por exemplo, quando têm a função de motivar a hostilidade da senhoria. Eles completam o quadro geral das situações e vivências singulares do protagonista, permitindo ao espectador perceber, sem polêmicas, mas através da pintura de contrastes, realizada em uma atmosfera de renúncias e humilhações causadas pelo ambiente em que ocorre, da tragédia íntima de Umberto D. A pluralidade expressiva do cinema tem a possibilidade de amalgamar esses planos numa síntese particularmente próxima da realidade; a atenção meticulosa aos detalhes, o estudo íntimo dos ambientes sociais espalham, por esse universo cênico, uma poesia cansada e melancólica de infelicidade incurável. E como a representação é chamada por meio de sugestões a determinar um grande fluxo de sentimentos capaz de provocar autêntica emoção e interesse por parte do espectador, é claro que tanto a imanência contínua do clima social que determina a catástrofe, quanto a gradual passagem das cenas ambientais ao trágico isolamento do protagonista corresponde a uma configuração geométrica do drama. A expressão penetrante de uma humanidade dolorosa sustenta a ação e a envolve com amplo interesse humano. O filme social se desenvolve como obra cinematográfica em um único motivo artístico determinado pela personalidade monótona, mas clara e motivada do protagonista, sobre um fundo homogêneo feito predominantemente de renúncias, decepções, dores, pequenas coisas velhas que se desvanecem sem possibilidade de retorno.

A unidade artística corresponde estritamente à unidade de ação. Talvez nunca antes Zavattini tenha sido tão linearmente homogêneo e irritantemente uniforme. Como no tema não há fuga e nem mesmo um compromisso, porque o amargor da decepção surge desde a primeira cena e se desdobra impiedosamente até a última experiência, assim também, na representação, o clima e a tonalidade não se alternam com saltos ou com clarificações repentinas, mas vão ficando gradativamente mais sombrios, até o máximo. Tal como o tema é retilíneo, a emoção é ininterrupta, homogénea, a sensibilidade é constante, particularmente eloquente nos silêncios desesperados e no diálogo reduzido a apelos e gritos de protesto. A crença de que o novo filme irá refutar o mito de “Zavattini, o bondoso”. O autor quis nos dar um filme amargo, sem relaxamento, sem um único oásis de sorriso. A evocação da imagem e do fato é apresentada com cálida humanidade, mas permanece cruel, desconsolada. Em Milagre em Milão havia a tentativa de fundir ao naturalismo o elemento de fábula; uma combinação que evidentemente não poderia ser resolvida nem artística nem estruturalmente, porque a solução sobrenatural do problema social, mesmo se preparada com sábio intelectualismo, é inadequada, assim como o milagre é antinatural. Por um lado, evocação direta e exata de cenas captadas com sentido realista, por outro, reconstrução de situações bizarras com base em pura fantasia. Com a sombria tragédia dos acontecimentos, a vida cotidiana, embora mitigada no momento da maturação pelo milagroso Totò e, por isso, não trazida à experiência decisiva, contrasta com a intervenção de uma força superior que, no fundo, reduz as personagens a símbolos e as transporta para o irreal. As pessoas tornam-se interessantes marionetes que Zavattini movimenta com um tecnicismo maduro, com procedimentos por vezes demasiado intelectualistas, mas sempre ou quase sempre com uma força evocativa. Não há desenvolvimento espiritual dos protagonistas e, portanto, mesmo em cenas realistas, eles tendem a desaparecer nas sombras. A oposição entre realismo exasperado e tonalidade de conto de fadas, que, por assim dizer, isola os episódios dramáticos e os coloca num fundo repousante de paz e tranquilidade íntima, é um engenhoso artifício de Zavattini destinado a mitigar o pessimismo geral, através da alternância de lágrimas e sorrisos e para mascarar a polêmica social do autor, seu ressentimento com a ganância e desumanidade dos empresários. Mas com este procedimento, a força evocativa dos episódios realistas envoltos no ambiente do conto de fadas é continuamente alimentada e recuperada. O valor estético de Milagre em Milão é, para mim, comprometido pela manobra do autor entre dois polos artísticos diferentes. Mas cenicamente a arte de De Sica, amarga representação da desilusão, soube quase sempre atenuar divergências estilísticas demasiado fortes e criar a impressão de uma evocação poética da imagem mesmo naquelas pinturas, em que o frio exame crítico podia revelar um simbolismo maneirista.

Na encenação de Umberto D., o dualismo de Milagre em Milão é, ao contrário, superado. Nada de fábula. História unitária. Personagens recortados contra o mesmo fundo, com silhuetas morais e artísticas individuais, mas muito semelhantes. A ação se limita à passagem progressiva da luta pela existência ao isolamento total do protagonista. Não intervém e nem pode intervir nenhum milagre. A singularidade dramática representada por Umberto corresponde à extrema pluralidade de tipos do Milagre em Milão. As outras pessoas são profundamente humanas, mas têm uma função estritamente ambiental. Da dor sombria, da amargura mortal, nunca se sai. Não há nenhuma busca por elementos interessantes esteticamente ou afetivamente, mas a interpretação constante de condições sociais que exigem uma alteração radical de nossa civilização. Este é um tema que em sua elaboração cênica não está carregado de muitas ou grandes possibilidades de transfiguração estética. No fundo, posso até me perguntar se a escolha do tema, seu isolamento de qualquer elemento heterogêneo não compromete o resultado do filme. O jogo de contrastes polêmicos de princípios políticos, que podem trazer um tom apaixonado e vivo à opacidade da ação, vai além do realismo socialista do roteiro. Volto a dizer: não tem arroz. Tudo é amargo, num cinza que por vezes contrasta energicamente com os fundos luminosos dos amanheceres e entardeceres apresentados com uma claridade estupenda. A história cênica nem tem uma conclusão material; Umberto não pode resignar-se a buscar na morte a solução lógica de seu isolamento progressivo, não pode escapar da vida, mesmo que tente o suicídio duas vezes. Não há dúvida de que a cena final concebida por Zavattini repousa em uma visão superior do problema da vida e que sua interpretação literária é aguda, refinada e também psicologicamente exata: vai convencer?

Certamente uma produção cinematográfica deste tipo requer um público capaz de analisar as emoções, capaz de se libertar de tradições arraigadas e das sugestões enganosas de mimos artísticos fáceis, atento e sensível ao apelo dos sentimentos. No fundo, todos nós trabalhamos para esse público, que julga e tem o direito de julgar. Mas a arte tem o dever de desenvolver o gosto, de refiná-lo, apresentando de tempos em tempos novas questões, continuamente provocando reações, solicitando compreensão e interesse. Quando o público não reage a um filme de valor artístico, significa que não foi compreendido; do ponto de vista do público, isso significará, no entanto, que a obra, pelo menos atualmente, não é válida. Sucesso e qualidade artística intrínseca são duas coisas muito diferentes, às vezes incompatíveis. Mas seguir um caminho com determinação e coragem, com intenção artística, é uma experiência louvável e um leal ato de fé no progresso. A premissa artística sem dúvida alcançada no roteiro de Zavattini é a substancial adequação entre intenção e elaboração; o resto é experimento. Mas as ciências progridem da mesma forma através da experimentação. Por acreditar nisso, abri parênteses na minha vida de cientista, participei de uma experiência no campo do cinema, ou seja, em um dos setores artísticos mais complexos, mais ligado ao rápido desenvolvimento técnico e mais capaz de atuar sobre as massas. Trabalhar com um realizador tão preciso nos detalhes, tão humano nos seus sentimentos, tão limpidamente emotivo como Vittorio De Sica, foi para mim uma lição preciosa que compensou largamente a coragem com que aceitei esta extraordinária experiência. A coerência entre roteirista e diretor em meu filme me lembra a íntima colaboração que encontrei em minha vida profissional com Giovanni Alessio, no trabalho em comum no meu Dicionário Etimológico Italiano, que me é caro porque constitui o tema científico dominante de meus últimos anos. Certamente ter conseguido estabelecer, pela primeira vez, um contato entre o mundo da ciência e o das artes foi uma fortuna impensada e imerecida que impactou e continuará impactando fortemente minha vida espiritual.

Il Professor Battisti presenta Umberto D. Revista Cinema (outubro de 1951; pgs 199-202)

Carlo Battisti interpretou a personagem-título de Umberto D., dirigido por Vittorio De Sica.

Alexandre Cataldo é criador do Podcast Filmes Clássicos e do Podcast Cinema Italiano.

Veja também:
Ontem, Hoje e Amanhã, de Vittorio De Sica

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