Azor, de Andreas Fontana

O banqueiro repete a trajetória do sócio desaparecido. Está na Argentina em plena ditadura militar. Nas ruas, soldados armados. Todos por ali são suspeitos. Será assim aos olhos do protagonista, o estrangeiro, e aos militares que solicitam documentos ao visitante, a qualquer um que possa ser, ou parecer, um subversivo – até um banqueiro.

E quando até banqueiros suíços desaparecem, notamos o pior dos mundos. Geralmente são os ricos e estrangeiros que se servem da terra arrasada. A maioria deverá escolher o lucro, o que significa fechar os olhos ao horror; alguns poucos podem olhar ao lado, pensar nos mortos e desaparecidos, e recusar o dinheiro. Há sempre um risco nessa operação.

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Sabemos por que René Keys desapareceu desde os primeiros instantes de Azor. Na ausência da democracia, ou se joga o jogo ou se é ejetado dessa guerra que, como bem define um monsenhor, “se ganha no front”. Os ditadores têm inimigos em comum – o pensamento contrário, a subversão, a liberdade, qualquer coisa que afronte o sistema e os negócios.

Em Azor, não enxergamos com clareza os lados do conflito. Seguimos o estrangeiro, alguém que não precisa entender tudo, ainda que tenha de sujar as mãos o suficiente para retirar seu ganho. O filme alimenta o medo à base de espaços quase sempre fechados, de senhores e senhoras que falam baixo, do tilintar dos copos e do ranger da bela madeira chique e resistente, das pinturas que expressam a guerra – os velhos tempos – e dos criminosos que se alimentam das bordas do poder, famintos mas servos da aparência.

Nesse assombro que é a estreia de Andreas Fontana na direção, tudo está dito desde sempre. É seu grande mérito: o universo, o clima, a proposta de que todos olhamos a esse regime de exceção, desde o início, como olha um estrangeiro. E se seu sócio não cumpriu o que os militares ou paramilitares desejavam, não significa que ele não cumprirá.

O protagonista é Ivan de Wiel (Fabrizio Rongione), em viagem à Argentina na companhia da mulher, Inès (Stéphanie Cléau). Nem sempre ela estará ao seu lado: há negociações que cabem apenas aos homens, e há espaços que celebram o macho. Ou o senhor de seu castelo, o sóbrio e decrépito que se vangloria das mechas brancas e, como todos, fala baixo.

A regra parece ser mesmo a obediência, a ordem, a ideia de um clube de chá em que todos precisam manter a etiqueta. Os militares foram cooptados, enriquecidos, para fazer o serviço que a elite – em seus clubes centenários, em sua glorificação do derramamento de sangue e execução – não pode mais fazer. A chacina converteu-se em pintura.

Ivan precisa reconquistar os clientes deixados pelo sócio. Alguns querem vê-lo, outros preferem evitá-lo. Ivan sofre do problema do duplo: nesse universo paralelo da ditadura, ele enreda-se em um delírio com toques kafkianos, e termina por ocupar o vácuo deixado pelo outro, o sócio. Nos negócios, rei morto é rei posto; nas ditaduras, acata-se as ordens dos donos do poder, clientes que estão enriquecendo com dinheiro na Suíça.

Um deles, o monsenhor Tatoski (Pablo Torre Nilson), quer inclusive apostar milhões em um negócio em Uganda. Ivan avisa que a operação é complexa e a chance de perder tudo é grande. O apostador religioso insiste, é dele a frase sobre o front de batalha. Talvez tenha informações privilegiadas sobre outra ditadura, talvez haja outra terra arrasada a explorar.

Nesse espaço de figuras estranhas e suspeitas, é interessante perceber o peso do som ao redor ao efeito que busca este cinema: o vento, o som das folhas, o impacto das patas dos cavalos sobre a terra na corrida e o quanto isso nos põe ao centro de uma tempestade em formação, a ideia de que o pior ainda deve ocorrer. Se o filme prefere, ao fim, o conformismo do protagonista, nem por isso será menos doloroso: Ivan aceita o acordo recusado pelo sócio.

O duplo é um traidor. Não pode ser o outro. No fundo, está à sombra e, a certa altura, à mulher que o reprova sem meias palavras, confessa que não pode ter o mesmo sucesso que René Keys. Ao banqueiro recém-chegado falta a força do sócio ou, supomos, o que o fez desaparecer: dizer “não” aos líderes de turno. Ivan prefere fazer o que fazem os piores especuladores: ganhar dinheiro com atrocidades e crimes alheios.

(Idem, Andreas Fontana, 2021)

Nota: ★★★★☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Veja também:
Argentina, 1985, de Santiago Mitre

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