Por Letícia Magalhães
A mulher com vários parceiros sexuais é vista como promíscua pela sociedade contaminada pela visão do patriarcado. A regra é clara: o homem com várias parceiras sexuais é pegador, a mulher na mesma situação é vagabunda. Essa hipocrisia já foi criticada em obras sobre mulheres “promíscuas” que salvam o dia, como na música “Geni e o Zepelim” de Chico Buarque e no filme soviético de mesmíssima trama Bola de Sebo (1934), que é uma adaptação de um conto de Guy de Maupassant. Outra obra que questiona a definição dos homens de promiscuidade é o filme cult A Noiva do Pirata, dirigido por Nelly Kaplan.
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Marie (Bernadette Lafont) nos é apresentada como uma gata borralheira, esfregando o chão na casa de fazenda de um velho inválido, que derrama a sopa ao avistar a calcinha da moça. Maltratada lá, ela volta para casa só para ser informada pelo carteiro – que tenta agarrá-la – de que sua mãe foi atropelada e morta. As pessoas falam sobre Marie como se ela não estivesse presente. A mãe de Marie também era escorraçada pelos cidadãos de bem do povoado, que achavam que faziam um favor por deixar Marie e a mãe, duas mulheres sem documentos, viverem entre eles.
A patroa de Marie, Irène, está decidida a levá-la para morar na fazenda, e de fato é para lá que Irène a leva na mesma noite da morte da mãe de Marie. Chegando ao quarto designado especialmente para Marie, Irène começa a beijá-la, mas Marie não reage às carícias. Ela não quer morar na fazenda: quer ficar em casa com seu bode, recebendo os homens do povoado para bebedeiras e sexo. Assim, passa a ser chamada de vadia pelas mulheres do povoado e também pelos homens a quem recusa carinho – Marie é seletiva e até mesmo um pouco distante. E mesmo os homens que ela aceita têm ressalvas, como o vendedor que, após o encontro com Marie, vai à farmácia em busca de um antisséptico.

Então Marie passa a cobrar por sexo, e sua fama se espalha para além dos limites do povoado, onde ela insiste em ficar. Os homens decidem resolver o problema Marie entre eles, tentando impedir que ela fique rica com a prostituição, enquanto as mulheres procuram ajuda do padre, pedindo que o bispo faça algo para expulsá-la do povoado. Mas ela só deixará o lugar quando estiver pronta, depois de expor a hipocrisia de todos. Aos expostos, restará apenas a possibilidade de destruir as coisas de Marie, como se isso fosse capaz de reconstruir suas reputações.
Nelly Kaplan é diretora, produtora, editora e roteirista de A Noiva do Pirata. Nascida na Argentina, vinda de família russa, aos 17 anos Nelly migrou para a França, onde trabalhou como assistente de direção para o lendário Abel Gance. A Noiva do Pirata foi sua estreia na direção de longas e permanece como sua mais conhecida obra, embora ela tenha dirigido outros 14 filmes. Kaplan faleceu em 2020, aos 89 anos, vítima da COVID-19.
No pequeno papel de Jésus encontramos o diretor Louis Malle. Em 1969 ele já havia estreado atrás das câmeras, e tinha em seu currículo grandes filmes como Ascensor para o Cadafalso, Amantes (ambos de 1958) e o psicodélico Zazie no Metrô (1960). Fica a pergunta de o porquê de Malle ter aceitado voltar para a frente das câmeras, em um papel tão pequeno.
A Noiva do Pirata representou uma volta por cima para a atriz Bernadette Lafont. Considerada a grande “bad girl” da nouvelle vague, ela já havia trabalhado com diretores como François Truffaut e Claude Chabrol em diversas ocasiões, mas a década de 1960 havia sido uma época de vacas magras para a atriz. Depois do filme de Nelly Kaplan, ela voltou a receber propostas de trabalho – incluindo algumas indecentes e propostas para fazer filmes pornográficos -, iniciando assim um tempo de muito trabalho para quem esteve em mais de 300 obras no cinema e na televisão.
Claro que em nenhum momento o filme endeusa a prática da prostituição: ela é apenas um meio encontrado por Marie para chegar ao seu fim, que é expor a hipocrisia dos homens do povoado – e no meio do caminho ela consegue algum dinheiro com isso. A prostituição seria uma maneira de a personagem – e não qualquer mulher – se empoderar. A ficção nos mostra isso, mas a realidade é outra: comandadas por cafetões – um dos homens do povoado inclusive se oferece para “dividir os lucros” com Marie, estabelecendo assim uma relação de cafetão com ela -, as prostitutas são mulheres exploradas, quase nunca empoderadas.
No Reino Unido, A Noiva do Pirata recebeu o título Dirty Mary. Nos EUA o título dado foi A Very Curious Girl. O título original justifica-se dentro da película – e vem na realidade da música “Pirate Jenny”, da famosa Ópera dos Três Vinténs -, mas as aventuras de tradução também não se saem mal ao tentar resumir em poucas palavras uma obra tão rebelde e ao mesmo tempo divertida. Reza a lenda que Picasso teria visto o filme e declarado: “Isto é insolência elevada ao estado da pura arte”, além de ter dito que encontrou “a mesma atmosfera dos melhores filmes de Luis Buñuel”. Se mexeu com Picasso, se mexeu – e com certeza mexe – com quem o viu, o filme cumpriu sua missão. Ninguém passa incólume pela vingança de Marie nesse cult feminista que merece ser redescoberto pelos fãs de cinema.
Bibliografia
GREENE, Linda. “A Very Curious Girl: politics of a feminist fantasy”. Em: Jump Cut, no. 6, 1975, pp. 13-14. Disponível em: https://www.ejumpcut.org/archive/onlinessays/JC06folder/VeryCurGirl.html
(La fiancée du pirate, Nelly Kaplan, 1969)
Nota: ★★★★★
AUTORA: Letícia Magalhães escreve em Crítica Retrô e Cine Suffragette

Veja também:
Bola de Sebo, de Mikhail Romm