O gelo cola nos casacos grossos, nos chapéus, nos cílios. Quando um dos dois soldados em campo aberto começa a tossir sem parar, o outro pede que coma gelo – o que sobrou para comer. Pelo menos na primeira parte, este parece ser o verdadeiro inimigo. Ou esta, a natureza indiferente à dupla soviética que, na Segunda Guerra, tenta sobreviver.
O cenário gelado de A Ascensão é a Bielorrússia dominada por nazistas. Os dois combatentes soviéticos estavam em um grupo maior e precisaram se separar dos outros para chegar a um vilarejo próximo e tentar encontrar comida. Um deles, Rybak (Vladimir Gostyukhin), o mais falante, o mais forte, possui uma companheira no vilarejo e se lembra dela com alguma felicidade – lembra-se, entre a neve, de seu calor.
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O outro tosse e mais tarde é atingido por um tiro na perna. Sangra, sofre, chega a colocar a arma na mira de sua face, pensa em dar fim à própria vida e evitar ser preso pelos nazistas que espreitam. Sotnikov (Boris Plotnikov) diz a Rybak que é formado em matemática. Pouco ou nada mais saberemos sobre ele. Na primeira parte, ambos têm apenas suas companhias, a camaradagem, a fidelidade que os impede de se despregarem.
O filme de Larisa Shepitko é baseado no livro de Vasiliy Bykov. O roteiro foi escrito por ela e Yuri Klepikov. É um dos filmes mais fortes sobre a Segunda Guerra Mundial. Em sua primeira parte, encontramos o homem contra a natureza; na segunda, o homem contra si mesmo. Na primeira impera a câmera na mão, o movimento trepidante, a aparência de desorientação de duas pessoas entre neve a perder de vista.

A escolha é certeira: a desorientação da câmera tem a ver com a experiência de seres em ação constante, sob o risco do ataque, no campo de batalha. Experiência de se sentir em um corpo, também em um espaço no qual não sobra tempo para pensar, para se ter consciência, apenas para lutar pela vida. É como se Shepitko levasse-nos às origens do homem, aos animais que rastejam entre a neve para escaparem dos predadores.
A segunda parte embute a ideia de viver ou morrer. Depois de passarem pela casa de um homem mais velho (Sergey Yakovlev) e conseguirem ajuda na de uma mulher com três filhos (Lyudmila Polyakova), Sotnikov e Rybak terminam presos pelos alemães quando se escondiam em um sótão. Antes um ponto de fraqueza, Sotnikov revela a consciência da morte na segunda parte: será capaz de abrir mão da vida para não trair sua causa.
Aquele que pensávamos ser o mais forte, Rybak, abate-se perante a ideia de morrer. Está confinado com o parceiro sob interrogatório, depois em um buraco com pouca luz e uma janela pela qual a neve ainda penetra. Pensamos, devido a essa passagem, esse respiro, na natureza da primeira parte – como se por um instante ela tocasse-nos.
Por algum instante desejamos voltar a ela, ao império do instinto, da fúria, da guerra – contra a consciência confinada, a de dois homens que antes se uniam e agora veem uma divisão. E agora, cada um à sua maneira, um fim, uma morte, para a carne ou para o espírito.
Sotnikov sustenta-se como pode, prepara-se para o pior. Na sala do inquisidor, prende-se à cadeira e aceita o sofrimento. É torturado depois de questionado. Quem faz as perguntas é interpretado por Anatoliy Solonitsyn, pouco depois em Stalker. O dono das perguntas – do cenário de sofrimento, da satisfação da vitória ocorra o que ocorrer (mesmo momentânea) – encara Sotnikov enquanto este tem o peito queimado com a estrela, marcado como animal e depois colocado no porão com outros presos.
O confronto entre esses homens, o servo nazista e o soldado soviético, é um dos pontos altos desse filme brilhante. Shepitko cobre o grito da vítima com um efeito sonoro que amplia ainda mais a sensação de dor; os closes são perfeitos e suas trocas – o plano e o contraplano, o plongée e seu oposto – alimentam a ideia de que não há saída.
“Em A Ascensão, Shepitko está vendo do ponto de vista do espanto, e a câmera é seu instrumento que pergunta: o que está acontecendo? Ela usa-o para descobrir a angústia existencial comum à confusão moral dos tempos de guerra”, observa a poetisa Fanny Howe em ensaio para a Criterion Collection. Passada a tortura, a dor física, a confusão moral só aumenta: chegamos então à consciência, e voltamos a Rybak.
Aquele que antes parecia o mais corajoso não pode se dobrar à morte. Ele chega a aceitar ser um soldado do inimigo, um policial, uma espécie de kapo – o que for preciso para não morrer. Como Judas, a salientar a parábola bíblica no filme de Shepitko, acompanha a execução dos inocentes, serve de ajudante ao carrasco e, em vão, tenta se matar.
Rybak imagina a própria morte em diferentes passagens. É-lhe insuportável. Achamos que pode ter escapado, que pode ter sido morto a tiros – e ele volta, com vida, assustado, para nos assombrar. É a fraqueza, parte do humano dostoievskiano que a própria cineasta destacaria em entrevista à revista Écran, em 1978: “O que se deve lembrar é que em cada um de nós reinam os dois personagens: toda nossa vida é uma mistura dessas duas essências, o Bem e o Mal, e aí voltamos a Dostoievski”.
Consciência e princípios nem sempre sobrevivem à luta do homem contra si mesmo. Em Sotnikov e Rybak vemos Cristo e Judas. É a ascensão que faz de nós, como pretende a leitura bíblica aqui posta, mais que corpos, mais que animais ferozes entre a neve, em luta com o predador. Dados à execução, à forca, revelamos quem somos de verdade.
(Voskhozhdenie, Larisa Shepitko, 1977)
Nota: ★★★★★
AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

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