A Garota, de Márta Mészáros

A saída da pequena cidade não marca o encerramento. Ainda temos pela frente algum tempo com a protagonista, a menina que se constrói com poucas palavras, que se deixa flagrar em detalhes, aos efeitos dos movimentos de câmera. Estão ali suas emoções, seus medos, seus vacilos, uma alma que julgamos atormentada a compor uma tela fria.

Por algum tempo temos apenas indicações do que ela quer e aonde vai em A Garota, de Márta Mészáros: o que poderia ser uma viagem ao encontro da mãe que nunca conheceu – fosse este um filme comum sobre descobrir as origens – torna-se o ensejo para o retorno, para a vida que precisa confrontar na cidade, para ser o que sempre foi.

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O campo é um local sem graça. Os rapazes não têm muito jeito com as mulheres, não conseguem se aproximar. Sabem de cara que a garota não pertence àquelas bandas. Como o homem que casou com a mãe, os meninos adiantam-se para confirmar o que sabemos: “você é de Budapeste, não é?”. A resposta é óbvia. A garota dá de ombros.

Szõnyi Erzsi (Kati Kovács) cresceu em um orfanato. Rejeitada, como todas as outras garotas ao seu lado, ela serve de mão de obra à tecelagem. Não tem muitas opções. Tem dinheiro, alguma independência e, após cruzar a linha dos 20 anos, resolve reencontrar a mãe. Logo ficamos sabendo que ela mandou cartas à mulher que a deixou, que não a deseja, e que mora em uma cidade afastada à qual precisa viajar.

Nem que seja apenas para encarar o que pode ser desagradável, nem que seja apenas para descobrir o quão pobres são alguns seres e o quão pequena é sua nascente. Na estação de trem, ninguém para buscá-la. No chão de lama, o ônibus estacionado. Será seu único passageiro na ida e na volta à estação, local quase perdido no mapa.

A frieza dada por Mészáros às situações que envolvem essa viagem de descoberta não deve ser vista como um ataque ao camponês e seu modo de se relacionar. A intenção é revelar o quanto a garota está sozinha e que apenas sua força e independência poderão salvá-la de fim semelhante ao da progenitora. Estará na contramão da mãe que nunca conheceu, mulher com lenço a cobrir a cabeça, obediente ao marido, econômica na fala.

Interpretada por Teri Horváth, a senhora da casa pede que a filha diga a todos que é sua sobrinha. Precisa mentir. Marido e filhos não podem saber seu passado, para que assim seja mantida a aparência de ordem, de pureza, a imagem da mãe. E para que ao homem, o dono da casa, seja resguardada a honra da mulher, também a dele como pai de família.

O homem ainda tem a palavra e, à moda antiga, bronco, deve manter sua personagem como sempre foi: é quem dá as ordens, quem diz quando o almoço começa, quem escolhe a hora de apagar a televisão, quem deixa que sua mulher – momento em que ela revela-se, sem o uso do lenço – faça-lhe algo como morder os lábios enquanto dormem juntos.

A família em questão não reflete Szõnyi. A mãe tampouco. Ela precisa ir embora. Mészáros, também autora do roteiro, mantém-nos com a garota. Segui-la é necessário: saímos com ela do espaço no qual tudo lhe é diferente para retornarmos, com ela, ao espaço em que tudo a abraça, no qual pode ser quem quer, ainda que esteja descobrindo.

Diz-se muito com pedaços aparentemente insignificantes, com indicações, com o domínio do movimento de câmera – em momentos excessivo, é verdade – para que não fiquemos só com as expressões da tão bela Kovács. Nas voltas e recuos sobre os trilhos, a câmera confere emoção, divide conosco o interior confuso da personagem central.

Nas idas e voltas de sua viagem de trem, ou em um baile, ela conhece homens, faz sexo com eles, beija-os sem sequer saber seus nomes. Garota livre que sabe usar seus silêncios e, ora ou outra, deslocada, ainda sorri. Na sua órbita do início ao fim, encontramos mais sobre a força da mulher do que em muitos pretensos panfletos feministas.

(Eltávozott nap, Márta Mészáros, 1968)

Nota: ★★★★☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Veja também:
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