Que é a felicidade? Ao provocar a indagação, Le Bonheur não estava intimado a respondê-la – se a dos dicionários é vaga, que resposta seria plenamente aceita? A discussão resulta da última cena que reproduz a primeira com a substituição de um elemento apenas. O mesmo piquenique no campo, o mesmo marido, as mesmas crianças – só a mulher é outra, a família continua, a felicidade é, ou parece ser a mesma. Todo o filme é esta cena – todas as outras são essenciais e, de resto, construídas com simplicidade e rigor, exemplarmente. Mas a imagem é decisiva: qualquer outra não teria a ressonância da surpreendente, chocante no entanto lógica sucessão de Émilie (Marie-France Boyer) por Thérèse (Claire Drouot).
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Por que o choque? No plano moral, diz Agnès Varda, “o que perturba é a falta de sentimento de culpa”. François (Jean-Claude Drouot) teria percebido, no entanto, que a revelação do que sentia com o amante foi o que levou Émilie ao desespero? Suicídio ou acidente? “Nada indica claramente que a mulher tenha cometido suicídio, embora nenhum espectador tenha dúvidas a respeito” – argumenta a autora, que parece dar uma certa autonomia a seus personagens, ou não diria também: “penso que foi suicídio, mas tenho uma certa dúvida assim mesmo”. Uma depois da outra, louras talvez até fisicamente semelhantes – as crianças não ficarão sem mãe, François não será viúvo, Thérèse manterá, no lugar de Émilie, a integridade do casamento. A felicidade estará retratada nessa cena?

Le Bonheur, terceiro filme de longa-metragem de Agnès Varda, apresenta essa realizadora no Brasil, onde não foram lançados La Pointe-Courte (1955) e Cléo das 5 às 7 (1962). Com o primeiro, inscreveu-se entre os precursores da chamada nouvelle vague – se isso tem alguma importância. No segundo, já estava mais adulta do que quase todos os seus companheiros de geração e movimento, o marido Jacques Demy entre eles. Le Bonheur a consagra no plano onde a invenção é contida por estratégia – a câmera não procura sensacionalizar o pretexto ou a circunstância, a narrativa corre linearmente, sem disciplina mozartiana. Mozart comanda os movimentos no tempo, ou nas estações – mas, na cor, é da pintura impressionista que a fotografia se aproxima em muitos momentos, sobretudo em todos os piqueniques, pois muitas vezes Le Bonheur está retendo e ampliando a lição renoiriana (Auguste e Jean) da Partie de Campagne.
No final, a felicidade – ou, então, o quê? Varda talvez saiba mais do que sugeriu. “A aparência de felicidade é também a felicidade”; assim sendo, tudo está perfeito ao recomeçar o piquenique, no último giro da história. Porque “a felicidade é também um jogo de espelhos”. Se uma pessoa se sente feliz, diz a outra que é feliz, a felicidade se comunica e aumenta – a alegria se espalha, não importa entre quem ou quantos. No que talvez seja cinismo ou ambivalência, antes de mais nada pela inteligência com que excita o espectador, Le Bonheur é o filme que prova o valor de Agnès Varda, definitivamente.
Correio da Manhã (19 de agosto de 1966)

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A Moça com a Valise, por Antonio Moniz Vianna
Adoro esse filme da Varda. Muito obrigada por compartilhar a crítica.