Triângulo da Tristeza, de Ruben Östlund

A raça humana pende sempre à fraqueza, crê Ruben Östlund. Seu cinema empenha-se em mostrar isso. São histórias de pessoas que sucumbem aos instintos e se revelam. O exemplo óbvio parece ser o do pai que corre de medo da avalanche e deixa mulher e filhos para trás em Força Maior. Todo o restante vem a reboque dessa situação.

Outro exemplo de fraqueza está no rapaz que entrega seu corpo, seu sexo, em troca de comida, em uma ilha deserta, em Triângulo da Tristeza. Um daqueles seres pequenos por quem não sentimos nada, e até consideramos natural seu movimento, também sua alegria ao encontrar um perfume intacto entre o lixo que encalha no paraíso hostil.

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A certa altura, ao presenciar uma discussão entre ele e sua namorada, um taxista diz que o rapaz precisa lutar por ela. No início, ele joga com o discurso da igualdade entre sexos e, à frente, incomoda-se quando vê a namorada flertar com um funcionário do navio, cujo naufrágio servirá para revelá-lo, a exemplo de uma certa classe dominante. Provável protagonista, ele é tão ou mais fraco que o pai de família de Força Maior.

Triângulo da Tristeza é dividido em três partes: a primeira, a mais insuportável, mostra-nos as discussões do jovem casal por causa da conta do restaurante; a segunda leva-nos ao interior de um navio onde está o casal e outros tipos curiosos; a terceira e última joga-nos na ilha em que o rapaz encontra a forma mais fácil de sobreviver, sendo ele mesmo.

Carl (Harris Dickinson) é modelo e, no início, durante um jantar, repreende a namorada, Yaya (Charlbi Dean), quando ela finge não ver a conta. Ela talvez não queira pagá-la, e espera por um gesto dele. Ou nem tenha reparado no detalhe: como ela faz questão de ressaltar, ganha mais que o companheiro. Dinheiro não seria problema para esses jovens modernos e bem resolvidos. O cartão dela, dado ao garçom, curiosamente é recusado.

Para Carl, nesse maravilhoso mundo novo de beldades e jovens modelos de passarela, a bordo de espetáculos de crua falsidade cobertos por slogans sobre união e diversidade, mulher e homem têm poderes iguais. Mais tarde, na ilha, isolado e com fome, ele terá de deixar a mulher – outra mulher – pagar a conta. Será quase um escravo.

Entre a passarela e a ilha há o oceano. É onde nos lança Östlund, com jogos de saturação do tempo, brilho corrosivo, corredores tortos e a tremedeira que, no interior, através de talheres caros, reverbera a natureza. O mar bravo nem precisa tombar o navio. A máquina resiste mesmo sem capitão. Os piratas à espreita dão cabo do objeto.

Carl e Yaya estão entre os convidados. Ele fotografa-a para as redes sociais. Estão ali porque ela é uma influencer, ou seja, porque não faz nada senão ser bela aos milhares que a seguem nas redes sociais, que compram o que veste, que se espelham no vazio que a mesma representa. Jogá-los em uma ilha é o golpe fácil de Östlund, cuja crítica social voltada aos super-ricos e excêntricos não tem o mesmo peso que The Square ou Força Maior.

Um filme de pequenos grandes momentos espalhados e que em outros vários desperdiça as ideias que o alimentam. Sequer pena conseguimos sentir dessas pessoas à deriva, desses seres que se creem no controle. Talvez seja este o tema do filme: o dinheiro ou a ideia de poder produz tamanha cegueira que seus detentores, no navio, através do oceano, não conseguem mais viver um mundo real em que é preciso lutar, em que a comida não é entregue por um criado, em que não há vendedores ambulantes para agradar seus clientes.

Em algum ponto a ilha produz ilusões: uma senhora enxerga um vendedor de chapéus e produtos eletrônicos, como se estivesse de volta ao turismo ao qual é adepta; Yaya encontra a passagem para um hotel, uma casa ou um clube, uma porta metálica incrustada nas rochas. É um delírio, mas uma visão possível, para Östlund, do nosso mundo: há outros ricos, mais ricos, escondidos na ilha, essa espécie capaz de se reproduzir em qualquer lugar.

Perto de Yaya em seu encontro revelador está a personagem mais forte do filme, Abigail (Dolly De Leon), a única que sabe pescar e pode trazer comida aos ilhados. Antes era a faxineira do navio; agora é a líder do grupo. Toma para si o título e declara enquanto come a maior parte do polvo que retirou do mar. O jogo muda. Aos demais, resta apenas observar os movimentos de Carl, o príncipe louro que Abigail, todas as noites, tem em seus braços.

(Triangle of Sadness, Ruben Östlund, 2022)

Nota: ★★★☆☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

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