O casal com tendências violentas do primeiro filme de Kelly Reichardt, River of Grass, é bem diferente dos colegas que se unem para passar alguns dias nas montanhas em Antiga Alegria, ou para explodir uma barragem em Movimentos Noturnos, ou da garota em busca de seu cão desaparecido em Wendy e Lucy e dos amigos da antiga América de First Cow. Em todos esses filmes seguintes, a diretora cede à paciência e delineia seu estilo.
RECEBA NOSSAS ATUALIZAÇÕES: Facebook e Telegram
Contempla o tempo das personagens, e nunca espera que algum momento de ação – crime ou violência – seja exibicionista. A mente criadora por trás desses movimentos, dos gestos brutos ou amigáveis, dos estranhos sentimentos que brotam das pessoas mais distintas (sobre as quais pouco sabemos), não deixa ver nunca uma mão pesada e controladora. O tempo desse cinema diz muito sobre o que Reichardt chegou a ser e o que se tornou.
Pois River of Grass é uma comédia de ação, fita policial sobre um casal em fuga, um rapaz (Larry Fessenden) que encontra uma arma e, acidentalmente, na companhia da mulher (Lisa Donaldson) que acaba de conhecer, comete um crime. O desacerto é tamanho que esse crime não ocorre como eles imaginam. A dupla pensa ter algo quando não tem.
Nada que aponte ao acaso. As peças colam-se. O filme tem felizes achados e vícios típicos de uma cineasta em primeira viagem. Tem também o frescor de quem pode arriscar, de quem não se importa com os sinais manjados, como a nouvelle vague francesa. O casal tenta vender discos com trilhas de filmes de Bardot, atira como os bandidos de Godard.
Como nos filmes franceses dos anos 1960, dispensam psicologismo a favor do tempo da ação ou do amor, ainda que possam soltar palavras profundas de algum livro ou filme, ou de seus interiores, sem receio de imitar e, sobretudo, fazer pose, moldar estilos.
O abismo visível entre River of Grass e os trabalhos seguintes e mais famosos de Reichardt não impede que encontremos algo em comum: os Estados Unidos na mira de sua câmera cultivam pessoas impelidas à margem, que com muito pouco contam o drama desse mesmo país e, em alguns casos, estão na base de sua formação ao renegar o gênero que outras vezes, repetiu-se à exaustão, contava a história desse mesmo território: o faroeste.
Reichardt, em seu primeiro filme, sai em busca da mãe que deixa o filho pequeno em casa e caminha por longo pasto verde para pular uma cerca e, logo à frente, beber cerveja com algum homem disponível; do rapaz que tenta canalizar sua fúria quando se vê com uma arma na mão, objeto que foi do pai policial da mesma mulher, dado a ele por um amigo.

Dois jovens em fuga, na tradição que nos faz pensar sempre em Bonnie e Clyde. No entanto, essa comédia de erros propõe o oposto ao filme de Arthur Penn, com seu tom pastel, sua América real, pronta para emoldurar; está mais perto do Godard em seus primeiros dias, com montagem rápida, personagens de passagem, situações cômicas às vezes próximas do ridículo. O que há de pior no país em questão está exposto.
O que viria depois, com Reichardt, prefere o oculto, a narrativa banhada à cadência. Aterrizamos, passados mais de dez anos, em Antiga Alegria, na viagem de dois velhos amigos que se reencontram em Portland, Oregon, e seguem à estrada com vista às montanhas, à mata fechada que os absorve por tempo suficiente para que se revelem.
Dois homens, o filme todo, sob as lentes de uma mulher. A aparente oposição entre eles logo mostra-se frágil: estão mais próximos do que nunca, unidos por algo que temos dificuldade de definir. Diz-se pouco com muita certeza: existe ali um passado transparente nos olhares, nos estranhamentos, na liberdade de brincar com o outro.
Mark (Daniel London) é aquele que “deu certo”: casado, futuro pai, dono de um bom lar. Enfim, colhe o que plantou, na aparência do homem moderno realizado, do tipo que medita no quintal ao som dos pássaros, ao efeito do verde que transborda em todos os filmes de Reichardt. Seu amigo, Kurt (Will Oldham), liga e o convida para uma viagem a uma estação de águas termais no interior das montanhas, local um pouco abandonado.
O que poderia ser a deixa para o exorcismo das relações e do passado, para que esses homens coloquem às claras suas diferenças e seus desacertos sobre a maneira como pensam, dá lugar a um filme sóbrio no qual Reichardt sempre põe o essencial nas entrelinhas, das trivialidades aos olhares de (in)compreensão, depois ao inesperado toque na pele.
A provável relação gay vista por alguns é, na verdade, algo como uma sensibilidade possível apenas a partir da junção entre os sentimentos do passado e o isolamento proposto. Esses homens só podem se tocar quando chegam ao centro da viagem, às águas quentes que brotam do solo e escorregam pela madeira até seus corpos nus.
Antes que cheguem a esse ponto – ao toque causado pelo avanço de Kurt, para o desconforto do amigo -, eles precisam reviver a conexão perdida. Os primeiros diálogos são de velhos camaradas; depois, ao pararem em um local com lixo no chão e um sofá abandonado, à noite, Kurt confronta o ponderado Mark. Fantasmas retornam.
Os vultos de Reichardt nascem sempre do sentimento de perda, do olhar à desconexão humana ou à natureza que devolve imagens ao mesmo tempo de morte e vida, como no lixo acumulado em Antiga Alegria, ou nas árvores aparentemente mortas e parcialmente cobertas pelo represamento da água, ao longo do rio, em Movimentos Noturnos.

Essa América silencia – ou pouco se conecta – perante os cadáveres de uma natureza que tudo engolfa, no tom menor mas consciente da grande cineasta. O jogo entre a aproximação e a distância desses dois amigos, por exemplo, permite enxergar o quanto essas pessoas – todas essas pessoas comuns que passam por todos os filmes da diretora – sentem dificuldade para dizer algo e quanto seus gestos dão cabo desse impasse.
Dizer algo por dizer, impressão de tempo perdido, palavra desconexa do que realmente se deseja verbalizar. O que, outra vez, aproxima (quase) todos esses filmes. River of Grass de novo soa como exceção: as palavras, ainda que pareçam, não são ditas à toa.
A que “antiga alegria” leva esse filme? A de estar com o velho amigo, perdido em lugar algum, para relembrar o passado, ou para não se fazer nada enquanto se tem ao lado a companhia de alguém que se julga conhecer há muito tempo? Não sabemos ao certo se Mark sente-se seguro ou confortável ao lado de Kurt.
Com eles, a cadela Lucy, a companheira que percorre a mata – ao lado, à frente, nunca muito perto -, que alegra os espaços, que nos sintoniza ainda mais com a ideia de seres conscientes de seus papéis nessa sociedade que os limita sempre a alguma cordialidade, ao companheirismo, à fidelidade; o animal apenas vive, obedece seu dono.
Sociedade imposta
Por caminhos não menos estranhos, também em deslocamento, está a protagonista de Wendy e Lucy. A impressão é que a moça não reconhece seu próprio território e, por alguns dias, tudo parece dar errado. A transformação demora a se revelar; a viajante ainda crê que pode escapar de uma cidade pequena, simples, de pessoas simples, com alguma rapidez.
A bordo de seu carro velho, com sua cadela Lucy (a mesma do filme anterior), Wendy (Michelle Williams) cruza o Oregon para chegar ao Alasca. Espera encontrar uma vida melhor no território ao norte do país. O que deveria ser uma passagem sem demora revela-se problemática: Wendy furta alguns produtos de um supermercado, é presa e perde seu cão.
O animal foi deixado amarrado na frente do comércio no qual ocorreu o crime. Do banco de trás do carro da polícia, a moça enxerga o animal sozinho, cada vez mais distante – em um dos muitos momentos de desespero que Reichardt calibra à perfeição. Perder o cão significa se despregar do último ser que ainda possibilita companheirismo e confiança.
Encontrá-lo, contudo, não é o que move essa história: importa à cineasta, em roteiro escrito com Jonathan Raymond, a andança e as descobertas, o que está além, para Wendy, da floresta, do orvalho no qual se escora, da terra sobre a qual se deita. A descoberta, por exemplo, dos jovens à deriva, que falam muito e usam drogas, no início do filme.
Há, desde sempre, sinais de que algo deve acabar mal. O filme aposta na ambientação, no medo que não toca o suspense, mas, em não mais que instantes, que nos entrega o terror de se viver o desconhecido, ver-se sozinho – neste caso, sozinha – para dormir ao relento e descobrir, no meio da noite, as ameaças de um homem que mais parece fantasma.
Wendy descobre a maneira automática como vivem tantas pessoas daquela cidade e se defronta com a “padronização” que recobre essa mesma vida em sociedade: trâmites para a ficha policial, cadastro do cão perdido, o cansaço gerado pelo carro na oficina. Entre tantos, alguém destoa: o velho segurança que acordou Wendy, no início, quando ela estacionou seu veículo na propriedade privada em que ele foi posto para fazer guarda.
Quando esse homem empresta seu celular à protagonista, pensamos na bondade dos estranhos, no otimismo e na força que retiram os filmes de Reichardt do maniqueísmo. Pessoas que precisam interagir, querem falar, fazer o bem ou apenas fazer parte. Gente como o rapaz que, à beira de um lago, aborda os ecoterroristas de Movimentos Noturnos e logo se revela um estorvo; ou o desbravador que aceita ajudar um homem perseguido, na floresta, dando início à grande amizade de First Cow, entre outros exemplos.
Além de perder o carro, Wendy descobre que é preciso perder mais. Ao encontrar a casa na qual sua cadela está, agora com novo dono, um homem mais velho, ela conclui – ao tocar o animal através da grade, ao perceber, estranhamente, a segurança que aquela mesma grade oferece – que a velha sociedade pode se sobrepor e o melhor é seguir sozinha.
Sua tristeza acompanha alívio. Wendy é agora uma solitária nesse espaço de luzes entre árvores velhas, pelo sol que se põe, em situação que a equipara à rancheira que tem apenas cavalos e cães ao lado, interpretada por Lily Gladstone em Certas Mulheres. É claro que Reichardt não perde de vista, em ambas, ou em várias, a condição feminina.
A história de Wendy é a da garota que cansou dos outros, perseguida pelo fantasma masculino que surge da floresta, à noite, para declarar loucuras – enquanto a ela resta sofrer calada, silenciar para não ser assassinada, para depois correr ao banheiro de um posto de combustíveis e perceber sua fragilidade. Outra vez, está só.
O mesmo para a citada rancheira: após passar a noite à procura da mulher que ama, a professora com quem se deparou por acidente na pequena escola de sua cidade, ela entende o quanto é difícil se parte da vida do outro, ser aceita, colher o afeto que está disposta a ceder. Gladstone tem um sorriso confortante, face amigável, como se todo o calor do mundo estivesse disposta a dar – à contramão da garota moderna vivida por Kristen Stewart.
Choque de civilizações, de estilos de vida, à parte dos sentimentos possíveis. Pessoas que se percebem com muito pouco, que se compreendem ao menor sinal, dispostas, no caso da rancheira, a oferecer qualquer pequena experiência para conceder à outra um pouco de seu próprio mundo – tão perto, tão longe. Nesse caso, o passeio a cavalo até a lanchonete.
Em Certas Mulheres, Reichardt explora três histórias sobre três mulheres diferentes: uma advogada (Laura Dern) com problemas com um de seus clientes, uma mãe de família (Michelle Williams) que quer construir sua casa e a rancheira (Gladstone) que encontra nas aulas de uma desconhecida um sentimento inesperado, algo extraordinário.
A realizadora compõe o roteiro a partir das histórias de Maile Meloy. As mulheres em questão vivem próximas mas não se conhecem, nem chegam a se esbarrar. Uma delas, a rancheira, chega a observar a advogada, que, por sua vez, é amante do marido da mulher que deseja construir sua casa e tenta conseguir antigas pedras para isso.
Nada mais que esses cruzamentos. Sequer uma palavra trocada. A conexão dá-se, primeiro, pelo que soa diferente e, descobrimos ao longo dessas três histórias, aproximam essas mulheres: a tentativa de dar significado para seus espaços de vida, para além da labuta diária. O que talvez explique os gestos de bondade da advogada que não desiste do cliente; o gesto de agradecimento da mulher ao velho homem que lhe dá as pedras; o gesto que permite um último encontro entre a rancheira e a professora de outra cidade.

Esses movimentos evitam o manjado drama de rompimento. Reichardt faz filmes tristes que trazem à tona o melhor das pessoas em uma América profunda. Em vários de seus trabalhos, o cenário é o Estado de Oregon; em Certas Mulheres, escolhe Montana, suas cidades frias de aparência acolhedora, seus cavalos fortes e cães simpáticos.
O faroeste
O cinema de Reichardt desenrola-se a partir das mais variadas missões, anti-epopeias de gente simples e sobrevivente: reviver o passado ao lado de um velho amigo, encontrar um cão desaparecido, explodir uma barragem ou, no caso do terceiro capítulo de Certas Mulheres, passar a noite no carro, em outra cidade, para reencontrar a amiga especial.
Chegar ao faroeste – gênero americano, cinematográfico, ideia de passado que põe o macho, o atirador, no centro da história – é quase inevitável: são histórias de formação, de camaradagem, não só de pistoleiros e confrontos. Com Reichardt, o faroeste deixa ver uma terra de vultos, o nada glorioso desbravamento de um lugar, em determinada época.
Em O Atalho, o faroeste solidifica-se na presença feminina, sobretudo em uma de suas três personagens que cruzam, juntas, um território: Emily Tetherow, vivida por Michelle Williams em outra parceria acertada com a cineasta. É ela que, a certa altura, de maneira inesperada, saca a arma para evitar que um índio seja morto pelo homem branco.
Nesse filme de extrema secura, faroeste de diligência, a mulher assume o protagonismo pelo gesto violento contra o barbudo, cabeludo, sempre com chapéu à cabeça, Stephen Meek (Bruce Greenwood). Ela, outras duas mulheres, três homens e uma criança estão submetidos a esse desbravador, que promete levar todos a um local de água e prosperidade.
O título original aponta ironicamente ao homem, ao “atalho de Meek”, caminho que não encontra término, alusão ao deserto masculino ao qual as mulheres são lançadas para viver sem escolhas, sobreviver a despeito dos mesmos homens e da natureza.
O gênero faroeste, enraizado na ótica masculina, dá vez a algo mais que apenas a história de mulheres em luta; na verdade, Reichardt avança algumas casas e nos fala da supressão dos mitos da construção de uma nação ou de um estado baseado em heroísmo e predestinação.
O Atalho é certamente seu filme mais áspero – nos mais diferentes sentidos. A umidade anterior, no Oregon das matas altas e fechadas, do orvalho constante, cede espaço ao chão de terra seca, ao campo aberto, amarelado, às grandes rochas que por um bom tempo não permitem ver a água e aos declives que tanto atrapalham o deslocamento.
No meio do caminho, o índio. Ele é capturado pelo grupo. Meek quer matá-lo, o que parece ser a opção mais fácil. Os outros acham que ele pode ajudar a encontrar água, conhecedor das terras como parece ser. O índio, com seu olhar atravessado pela incompreensão, faz de sua presença como homem preso o seu próprio universo: escreve em rochas, fala o que os outros não podem entender e parece clamar aos deuses – os seus – uma saída possível.
Os brancos viajantes não o compreendem por completo. Restam suposições, o que passa a revelar mais sobre quem prende do que sobre quem é mantido preso. A cineasta não faz desse encontro forçado uma saída para conexão entre povos, menos ainda dessa viagem difícil uma invasão aos instintos primitivos de seus migrantes.
Ao contrário, esse filme curioso, sem início e fim, é sobre resistir à própria forma, não exatamente a um estereótipo. Para Reichardt, a inclinação à selvageria extrema é nada mais que uma cilada; é preciso manter as personagens no limite de suas possibilidades, de suas naturezas, pois apenas assim o grupo pode se manter unido ao longo da jornada.
O único que destoa é Meek. Emily percebe sua necessidade de vestir uma personagem, o esconderijo que sua barba e seu cabelo representam, a ideia do desbravador que pouco a pouco vê sua aura desmontada face à realidade. É preciso confrontá-lo. Mais: é preciso confrontar tudo o que esse homem representa, com seus planos e atalhos.
A árvore vista ao fim, na paisagem pouco modificada, indica-nos não a vida em plenitude. Sua copa está seca, não o suficiente para matá-la. Através dos galhos, Emily enxerga o índio caminhando ao horizonte; seguí-lo parece ser uma aposta arriscada. O que resta a essas pessoas perdidas, nesse local distante, no centro desse atalho?
O faroeste move-se agora à força do acaso. As personagens estão perdidas e demoram um pouco para reconhecer. Algumas pequenas dificuldades – à contramão do efeito épico do faroeste clássico – tomam forma, e nenhuma cena exemplifica isso tão bem quanto aquela em que uma das mulheres caminha entre o deserto para pegar o lenço levado pelo vento.
O que parece pequeno ou passageiro não oculta problemas palpáveis, nem o horror que essa jornada sem água contém. Em cena, o movimento do homem contra a natureza, em busca de seu progresso, sua sociedade – o que coloca O Atalho em exata oposição a Wendy e Lucy e Movimentos Noturnos, nos quais o problema não é mais vencer a natureza, mas libertá-la.

No caso da moça sem seu animal ou dos ecoterroristas, a ação dá lugar ao enfado, à ideia de que nada há a fazer senão esperar. Em entrevista ao site À Pala de Walsh, a cineasta diz que “tornou-se tão comum no cinema os problemas serem tão grandes que não existem realmente, não são reais, as explosões são tantas que já não fazem diferença”.
Igualmente longe do faroeste clássico, First Cow- A Primeira Vaca da América oferece a natureza para ser vista mais em suas particularidades, menos em seu todo: o problema não está mais nas características do território, mas nas escolhas dos homens que ali vivem. É a história de dois amigos que progridem vendendo bolinhos feitos com leite roubado, extraído sem permissão da vaca de um poderoso dono de terras.
Uma parábola sobre o progresso pela via da trapaça, parte da jornada de homens com pouco para viver, donos da fortuna que não se mantém. Seres que nos convidam à bondade, para que confiemos no melhor das pessoas mesmo quando consideradas criminosas. A cada noite, a dupla segue ao rancho onde está a vaca – a primeira da América – para retirar seu leite.
O cozinheiro Cookie (John Magaro) trabalhava ao lado de caçadores, na floresta, quando, ao procurar comida pela mata, encontra o chinês King-Lu (Orion Lee), perseguido por um grupo de russos. O primeiro ajuda o segundo a escapar; a camaradagem entre ambos sobrevive ao terreno perigoso, à pouca luz que combina com a folhagem entre lama.
Outra vez Reichardt está em Oregon, a flagrar pequenos movimentos que explicam a origem dessa sociedade de comerciantes entre índios, bares escuros com jogadores, bebedores barbudos, aparência decadente à ótica da vida moderna. Lembra, em momentos, o extraordinário Quando os Homens São Homens, de Robert Altman.
A vaca é a prosperidade, pobre animal isolado que desce o rio sobre uma jangada para terminar nos domínios do colonizador, homem branco poderoso (Toby Jones), casado com uma índia, cercado por capangas, outro que se deixa seduzir pelo sabor dos bolinhos vendidos pela dupla central. Nas voltas da história, os vendedores terminam justamente em sua casa, onde se tenta dar vista a alguma etiqueta, onde um militar comporta-se como tal.
No caminho dos amigos está uma importante personagem passageira, garoto de olhar penetrante que esperou sua vez, na fila, para comprar um bolinho e não conseguiu. É alguém que depois poderá, à sua maneira, dar o outro e, sob a aparência do homem branco ressentido, matar aqueles que ousaram ser livres – diferentes dele e limitado ao seu cercadinho.
Ficam os ossos, encontrados no início, próximos do som dos gigantes metálicos que cruzam a paisagem sobre as águas: o progresso lento, distante e impessoal. O início e o fim. Os amigos morrem juntos. O cinema imagina suas histórias e ecoa suas almas.
Ensaio publicado originalmente no livreto que acompanha a edição brasileira do blu-ray de First Cow (Versátil Home Vídeo).
AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Veja também:
Nashville, por Wim Wenders