O cinema nasceu, como aponta a maioria dos historiadores, em 28 de dezembro de 1895, na primeira exibição aberta ao público, pelos irmãos Louis e Auguste Lumière, no Grand Café, Boulevard des Capucines, em Paris. O que muita gente não sabe é que, meses antes, os mesmos irmãos haviam realizado uma sessão privada, só para convidados.
Gente importante esteve presente nessa sessão, como o inventor Léon Gaumont, à frente da empresa L. Gaumont et Cie, responsável pela fabricação de equipamentos fotográficos. Ao lado dele, no escuro da sala, perante um momento histórico com pequenos filmes que mostravam a saída de trabalhadores das fábricas francesas e outras passagens cotidianas, estava sua secretária, uma mulher de 22 anos chamada Alice Guy.
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Lembramos com frequência dos sobrenomes Gaumont e Lumière, também de Edison e Méliès. São homens que deixaram inegável contribuição à sétima arte e abriram caminho para inovações científicas e artísticas. Com as mulheres, sobretudo uma delas, houve resistência. Alice Guy – que passaria de secretária à diretora de cinema – fez, segundo estudiosos, aproximadamente mil filmes (o IMDb já creditou a ela 457), em sua maioria curtas-metragens (como era comum nos primórdios dessa arte). Infelizmente, grande parte foi perdida, mas alguns estão disponíveis e hoje podem ser vistos.
O lugar merecido de Alice na História foi, por muitas décadas, negligenciado. Alguns de seus filmes foram creditados a homens. Críticos e historiadores de respeito como Georges Sadoul demoraram – e confessaram o erro – a reconhecer o peso da cineasta.

Para se ter ideia da importância de Alice Guy, o primeiro filme com encenação para a câmera – ou seja, o primeiro filme de ficção – pode ter sido dirigido por ela, ainda antes de Georges Méliès. Chama-se A Fada do Repolho e tem apenas um minuto e um plano. Mostra uma fada que retira crianças nascidas de repolhos, plantados e postos ao seu lado. Uma brincadeira mística que Alice repetiria em outros curtas, como A Parteira da Classe Média.
A Fada do Repolho foi feito em 1896, logo após o surgimento do cinema. Por algum tempo, acreditava-se que havia sido feito anos depois. Apresentado ao público, o primeiro trabalho de Alice fez sucesso e, por período significativo, ela não parou mais de dirigir – nem de fazer experimentações. Em A Madame dos Desejos, Alice aproxima a câmera da personagem central – uma mulher grávida que furta comida de outras pessoas pela rua – até quase chegar a um close, o que não era comum à época, quando atores quase sempre eram mostrados em planos médios ou em conjunto, ou seja, de corpo todo.
Mais tarde, faria filmes colorizados à mão e com som sincronizado à ação filmada. Nesse último sistema, chamado de chronophone, os atores gravavam suas falas antes e, durante as filmagens, ouviam o som do equipamento instalado ao lado da câmera e repetiam as palavras. Alice também fez documentários como Espanha, no qual registrou uma multidão pelas ruas de Madri, locais históricos, sua periferia pobre e a dança de mulheres ciganas. Anos depois, faria aquele que é considerado o primeiro filme com elenco todo composto por negros, o interessante A Fool and His Money.
Mais tarde, conheceu Herbert Blaché, com quem se casou. Tornou-se assim Alice Guy-Blaché. Com Herbert, que também trabalhava para a Gaumont, mudou-se para os Estados Unidos e fundou seu próprio estúdio, o Solax. Além de grande realizadora, Alice era uma mulher empreendedora e faz-tudo da empresa, da montagem à criação de legendas aos filmes mudos. No interior de seu estúdio estava escrito “Be Natural” (“Seja Natural”), maneira como os atores deveriam se postar perante a câmera.
A frase dá o título ao documentário Be Natural: The Untold Story of Alice Guy-Blaché, mais que recomendado a todos que queiram descobrir os caminhos estranhos da História do Cinema. No caso de Alice, que mais tarde viu seu estúdio ser fechado devido à concorrência com os maiores (que se mudaram para Los Angeles) e se separou do marido, a História comprova a dificuldade de ser mulher em um ofício dominado por homens.
Hoje menos, mas por muito tempo apenas nomes masculinos ganhavam espaço em qualquer lista de grandes cineastas. Quando uma realizadora como a belga Chantal Akerman aparece no todo do ranking da Sight and Sound, como se deu recentemente, não demora nada para alguns verem na escolha um gesto feminista ou algo do tipo – como se um filme como Jeanne Dielman não fosse bom o suficiente para ocupar o primeiro lugar.
Depois de Alice Guy-Blaché, aos trancos e nem sempre na quantidade desejada, vieram outras grandes cineastas: Cleo Madison, Mabel Normand (que dirigiu Chaplin), Leni Riefenstahl (que dirigiu documentários para o Partido Nazista), Dorothy Arzner, Gilda Abreu, Maya Deren, Ida Lupino e, com a nouvelle vague e o cinema moderno, Agnès Varda, Lina Wertmüller, Věra Chytilová, Marguerite Duras, Margarethe von Trotta, Márta Mészáros, Larisa Sheptiko, Ildikó Enyedi, Claire Denis, Jane Campion, Naomi Kawase, Kelly Reichardt, entre muitas outras. A lista só tem aumentado. O cinema agradece.
AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

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