As técnicas da manipulação de Leni Riefenstahl

Por Nelson Hoineff

Em 1938, Leni Riefenstahl ganhou o Prêmio Mussolini no Festival de Veneza por Olympia. Foi o único prêmio em festivais que ganhou na sua vida. Olympia, realizado em duas partes – a Festa dos Povos e a Festa da Beleza – documentava os jogos olímpicos de 1936 na Alemanha, ou o delírio de Hitler pela supremacia dos jovens arianos que desfilavam em Berlim, cujo anticlímax ganharia notoriedade internacional com as vitórias de Jesse Owens. Em Olympia, o grande vencedor era evidentemente o regime nazista. Para chegar a isso, Riefenstahl usaria as mesmas técnicas que quatro anos antes a haviam consagrado como a grande marqueteira audiovisual do Terceiro Reich, pela realização de Triunto da Vontade, o célebre documentário sobre o 4º Congresso do Partido Nazista em Nuremberg.

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Que técnicas eram essas? Para começar, a técnica da obtenção de recursos. Riefenstahl chegou a Nuremberg com uma equipe de mais de 150 pessoas, incluindo 57 cinegrafistas, 9 dos quais só para tomadas aéreas de um dirigível (D/PN50) e um avião Klemmer de combate. Depois, o controle total da situação. Riefenstahl participou ativamente da arquitetura do rally nazista com o célebre arquiteto Albert Speer; denunciou técnicos e artistas que se recusaram a participar do filme, como o cinegrafista Emil Schunemann; e ganhou espaço para notificar ao próprio Führer qualquer tipo de interferência de que se julgasse vitima, inclusive de Goebbels – o que fez várias vezes.

Riefenstahl conseguiu que Rudolf Hess construísse elevadores capazes de levantar suas câmeras 30 metros acima da multidão de mais de um milhão de pessoas; montou trilhos dos dois lados do campo Zeppelin; e vestiu seus cinegrafistas com uniformes da SA fornecidos por Himmler, de maneira que eles se confundissem com os soldados no meio daquele mar de gente. O próprio Speer concebeu uma delirante iluminação para o evento: uma “catedral de luzes” composta de 130 holofotes anti-aéreos que levantavam os fachos de luz a milhares de metros de altura. Nem Hollywood sonharia com isso.

Em sua famosa biografia de Riefenstahl, Glenn B. Infield descreve seu trabalho de câmera para Triunfo da Vontade. “Ela decidia sobre efeitos fundamentais que resultavam em fotogramas desorientados e animados. Filmava pessoas e objetos em situações irreais. Mostrava a parte superior dos prédios e o céu, mas não o solo, para dar o efeito de construções flutuantes. Os seres humanos, ela os filmava de ângulos que os faziam semelhantes a aparições no céu. Close-ups das pessoas marchando e das bandeiras, Hitler, seus oficiais, tudo se transformava em matéria bruta para o movimento. Se o objeto estava estático, ela ordenava ao cinegrafista que movesse a câmera.”

Movimento é o destino de sua montagem, um primor de manipulação. Leni passava 18 horas por dia tentando transformar as 61 horas que filmou “em algo interessante”, como diria mais tarde à BBC. Para que houvesse o movimento pretendido, a ordem dos acontecimentos tinha de ser alterada. “Não me importava a verdade cronológica”, dizia Leni. “A arquitetura do filme exigia que eu instintivamente encontrasse um meio unificante de montar, para levar o espectador progressivamente de um ato a outro, de uma impressão a outra.”

Isso dá consistência aos argumentos de que o filme jamais tenha sido um documentário, mas apenas uma extraordinária peça de propaganda. Triunfo da Vontade é um dos mais perigosos filmes de propaganda já realizados. Isso deve-se em larga escala a outra das técnicas utilizadas por Riefenstahl: a da persuasão. O filme foi concebido para demonstrar a unidade do Partido em torno de Hitler, o que não é feito por meio de palavras, mas pelo impacto da imagem. Filmado de baixo, já ensinavam os precursores russos, o tampinha Hitler pode transformar-se num gigante. Riefenstahl apelava para o instinto do homem de se tornar parte de um grande grupo e trabalhar para ele. Sabia que o ser humano é capaz de ser suficientemente burro para estar ali, lhe fornecendo aquela magnifica figuração.

A televisão só chegaria 15 anos depois – mas Riefenstahl recusou as sequências rodadas por Walther Ruttmann porque a linguagem do cinejornal já não lhe interessava. Em muitos aspectos, Triunfo da Vontade antecipa a linguagem do comercial que se tornaria comum muitos anos depois. Aos 98 anos, Riefenstahl só não está rodando comerciais com a mesma técnica que usou aos 32 porque não quer.

Revista Bravo! (maio de 2001; pg. 33)

Veja também:
As estátuas vivas de Leni Riefenstahl

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