Tár, de Todd Field

No púlpito, de frente à orquestra, Lydia Tár deixa ver sua força e concentração. Seus dedos simulam tiros, os olhos estão voltados à partitura, os ouvidos captam o menor desvio. A nós, apartados, ela flutua em outro universo e sente o que não podemos sentir. Sabe cada particularidade de cada peça. Não duvidamos de sua capacidade.

Em situação oposta, Todd Field desestabiliza a protagonista, tira-lhe o controle, e a reduz ao espaço que lhe é desconhecido, ao das aflições do mundo real, à sensação de viver entre o pior: ela é chamada às pressas por uma vizinha para ajudar a carregar uma mulher enferma, caída no chão. Lydia entra no outro apartamento como se entrasse no purgatório; seus olhos tremem como seu corpo e seu instinto impede que fuja.

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Se não ajuda a decifrá-la, ao menos esses extremos, em Tár, colocam-na ora em sua arena, ora fora dela. Field esforça-se para apartá-la e de repente muda a rota, leva à criatura raquítica, perdida, sem espaço. O papel nasceu para Cate Blanchett, capaz de corporificar ao mesmo tempo o demoníaco e o angelical, de nos convencer de que tem todas as certezas – na entrevista da abertura – para mais tarde não possuir uma sequer.

Field lança-nos no cubo de gelo que é o universo da maestro, no qual reina para depois perder quase tudo, para se debater enquanto pedem sua cabeça. Em queda lenta, ela ainda se segura como pode. Conseguimos vê-la e compreendê-la melhor enquanto cai, enquanto sua bela casa e carro aparentemente aquecidos não podem protegê-la.

A certa altura, como exemplo do que é capaz, ela diz a uma assessora, ao ser avisada do suicídio de uma desafeta, que a vítima não era “uma de nós”. O que é ser “uma de nós”? Lydia crê em um estado supremo, base de uma mentalidade elitista segundo a qual apenas alguns seguram a batuta. Ou só ela, pródiga em relacionamentos abusivos.

A protagonista é acusada de destruir a vida de outra profissional da música, chamada Krista Taylor. No início, enquanto Lydia dá entrevista, vemos apenas os cabelos vermelhos da outra entre a plateia. Ao longo do filme, uma tela de celular com vídeochamada reproduz diálogos entre pessoas, possíveis desafetas – uma, duas e outras mais – que, no privado, flagram a maestro enquanto se sentem fortes para dizer o que pensam.

A opção pela tela do celular e, mais ainda, por não revelar quem o manuseia faz pensar em Tár, se não por completo, como uma experiência vista em algumas de suas partes não pelo ponto de vista da personagem central ou pelo de qualquer outra, mas apenas pela câmera. Outra vez, não entramos na mulher nem podemos compreendê-la por inteiro. É como se Field, consciente de seus caminhos, não pudesse conceder tal ajuste, e como se essa concessão, uma vez tomada, implicasse explicar o coração que pulsa, a mulher que desaba.

Nossa distância em relação à Lydia é essencial para o filme funcionar. Em suas engrenagens tão bem controladas, em suas entranhas que, a despeito do cubo de gelo ao redor, possuem inegável alma, temos aqui uma relação semelhante à de Michael Haneke com suas personagens: a frieza quase cirúrgica, a indefinição, o pavor cotidiano.

Em certo sentido, somos os portadores desse celular ligado, do olhar intruso: acreditamos compreender, sobretudo após uma hora ou mais dessa experiência, a mulher que seguimos. Ela, lésbica, casada com outra mulher, Sharon (Nina Hoss), mãe de Petra (Mila Bogojevic), de quem segura um dos pés para a criança dormir, boa mãe que é.

A mesma mulher que se encolhe, sozinha, no avião que freta para cruzar um continente, a mesma que se vê em cacos durante o lançamento de seu livro, momento em que já levantam cartazes pedindo sua cabeça. A maestro que leva uma mulher à morte e ameaça a criança que agrediu sua filha na escola é também um gênio da música, a melhor em seu ofício, parte de uma sociedade que, sabemos, tratou de cancelá-la antes de um julgamento justo.

Em plano-sequência, acompanhamos a discussão de Lydia com um aluno (Zethphan D. Smith-Gneist) que, por ser negro e pangênero, diz não gostar de Johann Sebastian Bach – misógino, religioso, pai de 20 filhos. Além dos filhos, argumenta Lydia, o artista pariu grandes obras. Para o rapaz, a genialidade de um ser não permite atropelar questões da esfera moral; para Lydia, o oposto. Segundo ela, artistas serão julgados por suas obras.

Após mais de duas horas que não se fazem sentir, somos levados a uma nova encruzilhada e voltamos a pensar na longa discussão travada com o aluno pangênero: temos na tela mais da mulher do que da artista. Podemos separá-las ou seremos parte da massa que pede sua forca? Temos, no centro dessa história de mistérios, um pouco de sua alma atormentada, de sua dor, de seu amor pela música. Como Haneke, Field é cruel.

(Idem, Todd Field, 2022)

Nota: ★★★★☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Veja também:
A Baleia, de Darren Aronofsky

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