A câmera circula o homem obeso e capta sua imobilidade. Ele tenta olhar para trás, tenta escapar do sofá de sua sala e encontra dificuldades. Esse mesmo homem, um professor de inglês, escolheu viver essa imobilidade sob o peso de seu corpo, sob os muitos quilos de gordura que o recobrem, que o cercam, que pressionam seu coração e o fazem transpirar em excesso em seus últimos dias de vida. Ele escolheu morrer.
A escolha não envolve completa consciência. Sabemos da compulsão, da comida como fuga. Quisesse tirar a vida de forma rápida, recorreria a uma arma de fogo. Não é o caso. Quando o encontramos, em A Baleia, já está entregue aos dias finais – após muitos dias no mesmo imobilismo, na mesma casa e escuridão. Dias que viveu para lembrar o homem que amou e perdeu, para reencontrar a filha que acreditava ter perdido.
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Para entender a escolha de Charlie é preciso voltar a Moby Dick, o clássico livro de Herman Melville. Ao capitão Ahab e sua suposta idiotia, sua obsessão que envolve encontrar o monstro que retirou parte de seu corpo. É uma história na qual a loucura finge conviver com a sanidade: a caçada ao monstro é a desculpa de Ahab para chegar ao seu desfecho, é a entrega à morte que não pode assumir aos demais de sua tripulação. E quando sente dores no peito e passa mal, é à leitura de um texto sobre Moby Dick que Charlie recorre para sobreviver.
Ao contrário do que muitos pensam, o título A Baleia não se refere à personagem obesa vivida por Brendan Fraser, no papel de sua vida. Refere-se ao monstro que precisamos enfrentar – a metáfora da inevitabilidade da morte – e ao caminho que todos trilhamos, alguns de forma mais consciente, outros menos. A certa altura, a enfermeira que cuida de Charlie, Liz (Hong Chau), diz que nós contamos apenas com nós mesmos.
A morte é isso, defende o filme de Darren Aronofsky, a partir do roteiro de Samuel D. Hunter, de sua própria peça: um longo caminho agonizante pelo qual nos agarramos ao que ainda nos faz feliz (a lembrança do amor perdido, a filha não tão má como parece), ao que nos alivia espiritualmente (a religião) e ao que nos engana na fuga a lugar algum (a comida).
Aronofsky é um niilista de pouco talento. Tem boas ideias e, ao contrário de Lars von Trier, não sabe como estendê-las a ponto de nos convencer de que toda a dor do caminho trilhado valeu a pena. É um cineasta chegado a lugares escuros, a vidas apartadas, a metáforas religiosas e, ao se aventurar por uma das maiores, a da arca de Noé, não pôde fazer nada senão uma aventura pouco envolvente, um produto pesado e sem alma.
A Baleia só não é pior porque, diferente de Noé e Mãe!, contenta-se com menos, com o círculo fechado – e palpável – de um homem e das poucas pessoas ao seu redor. Não se rende à histeria, gera interesse e contorna a imobilidade – mesmo que o destino do protagonista seja dado no início, mesmo com a impressão de se caminhar à nulidade, à tragédia de alguém que não para de comer e, em momentos de fúria, come mais.
As personagens coadjuvantes ajudam-nos a compreender a central e sua condição. Enquanto a enfermeira pode enxergar seu desfecho, o menino religioso (Ty Simpkins) quer salvá-la apenas para saciar a própria consciência. No caso da filha de Charlie (Sadie Sink), ela tenta confirmar sua cegueira, provar a si mesma que não pode amar o pai que a deixou quando criança para viver com outro homem, um de seus alunos.
Nesse ponto, Charlie pode se considerar vitorioso: seu caminhar ao fim inclui a difícil missão de fazer a filha ver algo, ele ou suas próprias palavras. Quando seu coração é pressionado e lhe traz dores, Charlie recorre justamente àquela resenha sincera sobre Moby Dick, sobre como alguns seres – neste caso, uma criança – encaram o que a literatura fez de melhor, o que uma obra fez para resumir nossa condição neste mundo repleto de dor.
As letras acalmam Charlie. Ele respira. Na representação que nos é dada no fim, levita. A interpretação da obra de Melville leva-o a compreender o que nos faz respirar, o que nos faz insistir em manter o peso sobre as pernas e caminhar. Pode parecer apelativo e certamente o é. Graças a algumas escolhas felizes, a começar pelo ator que se revela sob camadas e mais camadas de maquiagem, a experiência ainda se salva.
(The Whale, Darren Aronofsky, 2022)
Nota: ★★★☆☆
AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Veja também:
Mãe!, de Darren Aronofsky