A Mulher que Soube Amar, de George Stevens

A presença de Katharine Hepburn é tão forte que chegamos a aceitar boa parte dos tropeços de A Mulher que Soube Amar. Na pele da irritante Alice Adams, ela embarca em uma jornada para ser parte da elite e, para isso, aceita ser outra, um embuste, algo que não sabemos definir ao certo. Hepburn equilibra-se entre a imaturidade e a ambição.

Na maior parte do tempo, Alice é imatura e não parece nunca servir ao tipo que galga posições sociais. Sua família de recursos limitados sempre é mais importante; ela não está disposta a tudo para conseguir um casamento rentável. É, como vemos em cada passagem do filme de George Stevens, o produto perfeito aos tempos da Grande Depressão: alguém que pode conquistar privilégios sem deixar de ser amável, menina que finge ser outra sem revelar por completo a verdadeira face (se é que esta existe).

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Pauline Kael define-a como “uma das poucas heroínas cinematográficas autênticas”. Certamente chegou a essa conclusão por conhecer tipos americanos – e suas ambiguidades – como Alice, descrita ainda como “ávida e desesperada arrivista social provinciana”.

Suportamos ela até o fim, até seu prêmio inesperado, sua saída por cima. Aceitamos suas voltas e sua luta para não mostrar o que é e muito menos levar para dentro de sua casa humilde o rapaz rico interessado nela – não antes da hora certa, quando Alice e sua família preparam um jantar, usam roupas que não cabem no corpo e contratam uma empregada negra para um dia apenas, para mostrar que possuem alguém para limpar a cozinha.

Stevens, a partir do livro de Booth Tarkington, engana-nos o tempo todo: faz um universo opressivo parecer um espaço alegre, uma história de amor cujo príncipe encantado não precisa sequer explicar seus sentimentos. Depois de aparecer em um baile e se encontrar com Alice pela primeira vez, Arthur (Fred MacMurray), um rico de bom coração, não deixará mais de procurá-la. Terá de suportar o calor e as falsidades do citado jantar, estranhamente atraído pelos tiques e frases de efeito da nova amada.

Por sinal, a sequência do baile é curiosa. Alice faz de tudo para estar lá, entre ricos e poderosos da cidade, em ambiente equilibrado apenas quando visto com alguma distância, do alto, enquanto corpos rodopiam no salão. Alice vai à festa com o irmão desbocado e vulgar, Walter (Frank Albertson), que não suporta a elite, que é real ao contrário da irmã, que joga dados com os empregados negros do casarão enquanto a moça dança.

Em casa, Alice tem a companhia da mãe (Evelyn Venable), que tenta fazer tudo por ela, inclusive convencer o pai (Fred Stone) de que é preciso ganhar dinheiro para que a filha tenha as mesmas oportunidades que as outras meninas da cidade. O pai é responsável por criar a fórmula de uma cola para a empresa em que trabalha, da qual está afastado. Sua mulher quer que ele tome os direitos da fórmula para si e não os deixe em poder do patrão.

Em um filme no qual a história de amor nunca suplanta as questões sociais, em que a casa humilde sempre tem mais peso que os espaços dos ricos, os sinais do capitalismo rondam os ambientes – e é o mesmo patrão, tão estranho à casa de Alice quanto a empregada negra, que surge ao fim para que as coisas se resolvam, para que os ricos vençam. Leia-se: para que o pai aceite continuar um empregado, para que o filho ladrão seja perdoado.

Para a família, a verdadeira personagem central de A Mulher que Soube Amar, a única saída será o casamento da filha, a saída pela porta da frente com o rapaz abastado que se viu apaixonado por ela. Final feliz que, para Kael, é o ponto baixo da obra.

O pior, contudo, reserva-se à personagem da empregada negra interpretada por Hattie McDaniel, famosa por seu papel em E o Vento Levou, último lugar nos créditos. Em cena, ela é ridicularizada. O que deveria ser um momento de confusão, a revelar o palco de pessoas que tentam encontrar alguma pompa durante o jantar e impressionar o pretendente rico da filha, termina por fazer da personagem negra um fardo, como se os negros fossem sempre desleixados, causadores de acidentes, como se não se encaixassem naquela redoma feita para fisgar o bom moço de terno branco.

É difícil aceitar escolhas como essa. Mesmo para um filme clássico que, sabemos, apela a todos os estereótipos possíveis, inclusive aos mais perigosos. Filmes como A Mulher que Soube Amar revela-nos um passado real em elementos secundários mas gritantes. Uma falsificação injustificável mesmo quando tentamos enquadrá-la como comédia.

(Alice Adams, George Stevens, 1935)

Nota: ★★☆☆☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

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