Vidas Separadas, de Delbert Mann

O mesmo homem que foge do passado, que mergulha na bebida, ainda prova lucidez ao enxergar o problema dos outros – não tão distante dos seus, no mesmo hotel em que está hospedado. É o escritor John Malcolm (Burt Lancaster). A vítima dos outros – sobretudo de uma senhora no papel da inquisidora – é o major Angus Pollock (David Niven).

Todos, inclusive os piores, como a personagem de Gladys Cooper, vestem máscaras. Em Vidas Separadas, o hotel à beira-mar – cujas águas nunca enxergamos – encapsula essas pessoas, sete ou oito, talvez mais. Local pequeno, triste, de madeira e móveis antigos. Só é possível escolher tal ambiente se for para se perder, o que aqui explica muito.

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O filme de Delbert Mann não sobreviveria sem seu preto e branco. Começa e termina com o hotel visto de fora, nas janelas quadradas cada vez mais próximas ou distantes. Estamos em um estúdio, o que não atrapalha: se a ideia é transferir ao cinema o “teatro” das vidas em questão, os limites que elas suportam sem explodir, eis a melhor fórmula encontrada. E se o filme não chega à grande empolgação, talvez isso se deva a uma certa necessidade de economia constante, apelo ao drama em tom baixo.

Quem melhor sintetiza a ideia da peça de Terence Rattigan é a personagem de Deborah Kerr, a protagonista escondida, o coração que finge não bater, a mulher fria que quer escapar da mãe e ainda não consegue – e talvez não consiga nunca, apesar da recusa de deixar o restaurante quando a mesma mãe (Cooper) pede que se afaste de Pollock, que quer expulsar do hotel, acusado de ter assediado algumas mulheres no cinema.

Não chegamos nem perto de ver um gesto de assédio na personagem de Niven. A ideia, segundo Rattigan, autor do roteiro com John Gay, é manter as imaginações ativas e no caminho oposto àqueles espaços enfadonhos, às mesas separadas, às falas como ação, à toda pequenez que se ferve no já citado tom baixo. É fazer, em certa medida, o impossível: levar-nos a crer que alguém como Pollock – ou como o cavalheiro Niven – teria feito algo obsceno, um crime no escuro, detalhado no jornal e assim descoberto.

A senhora vivida por Cooper quer cancelá-lo. Quer que ele deixe o hotel no dia seguinte e chega a fazer uma reunião com hóspedes para expor o crime. Não poupa nem a filha dessa história, a moça apaixonada pelo falso major. Ali, cada um se esconde como pode e o hotel – o cenário das “mesas separadas”, como indica o título original e menos óbvio – é o palco que cada um ocupa à sua maneira, a viver um papel ou se anular.

Malcolm esconde-se na bebida; a dona do hotel, vivida pela sempre ótima Wendy Hiller, na personagem da liderança que não pode desandar – a não ser quando se deixa amolecer pelos beijos do amante, justamente Malcolm; Pollock, na figura do militar e cavalheiro; a senhora Railton-Bell (Cooper), na sua própria hipocrisia; Sibyl (Kerr), ao se fechar em si mesma, neurótica e aprisionada, termina por ser a única personagem verdadeira.

Há ainda a recém-chegada, a destoar dos outros, na pele de Rita Hayworth. É a única personagem à qual olhamos e vemos o cinema clássico, o passado, a representação da mulher perigosa – que desestabiliza o ex-marido, Malcolm, como uma assombração. Rita é melhor quando cínica, quando se oferece ao alcoólatra, quando parece concordar com o papel da mulher em busca de um escravo, atribuído pelo amante.

As máscaras em questão não são difíceis de decifrar. A força que o filme possui em certas sequências – como as que Lancaster divide com Hiller – perde-se em outras, como nas que concentram as perambulações do suposto assediador de Niven, essa figura esquisita a quem só interessa continuar vivendo como sempre viveu, sob a pompa militar.

Ele sugere que Sibyl é como ele. Ambos estão fadados a se esconder, perfeitos ao hotel sem graça, nessa peça de estúdio que só não é pior porque Mann encontra soluções interessantes na execução de algumas cenas e sequências e tem à mão um elenco acima da média. O desafio é grande: preencher com vida um espaço que parece cemitério.

(Separate Tables, Delbert Mann, 1958)

Nota: ★★★☆☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Veja também:
Um Toque de Classe, de Melvin Frank

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