A solidão acompanha David Copperfield em boa parte de sua história. Na infância, a morte da mãe é substituída pela presença de pessoas especiais, e nem a rua é capaz de lhe retirar o lado amoroso. É sempre o mesmo menino especial, sorridente, empolgado.
Depois, na vida adulta, ainda se mantém incorruptível, um tanto garoto, a negar os cinismos de um universo repleto de vilões. Copperfield (interpretado no período infantil por Freddie Bartholomew e no adulto por Frank Lawton), na versão de George Cukor, custa a ser criança e adulto por completo, custa a ser real, o que ajuda a sustentar essa adaptação da famosa obra de Charles Dickens como a definitiva.
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Fábula sobre as agruras do crescimento, com o herói que percebe não ter controle sobre os rumos de seu universo – das boas às más companhias, dos golpes financeiros às doenças. Em momentos o terror assume aspecto expressionista, à contramão do visual aconchegante que domina boa parte da obra e no qual seus tipos – senhoras simpáticas, idosos sérios, crianças angelicais, marinheiros corajosos, criminosos mefistotélicos – estão rascunhados.
Para Cukor, o filme todo é a visão da infância mesmo quando esta é parte do passado. É a possibilidade de assegurar o bem, na rabeira de Dickens, ao reproduzir um mundo que, bom ou ruim, nunca existiu. É a maneira de nos dizer que o olhar do herói – criança ou adulto – serve à perfeição nos tempos que antecedem a Segunda Guerra Mundial.

Com Bartholomew, há uma criança que interpreta. Não há naturalidade. Tudo é expressão, simulacro, o cinema clássico em seus dias de glória. Eis o menino consciente dos males que o recobrem, como a morte da mãe e a presença do padrasto malvado (Basil Rathbone) seguido pela irmã masculinizada (Violet Kemble Cooper). O menino enxerga o próprio destino: à noite, quando sua mãe está à beira da morte, é assombrado por raios e trovões.
No espaço confuso de David Copperfield, os bons guias nem sempre são os mais corretos: um deles, a se destacar, é interpretado por W.C. Fields, cheio de frases de efeito sobre dinheiro e miséria, classudo mas pobre, espirituoso mas mundano. Com ele, o protagonista será levado a entender que o material da honestidade não reside apenas na pele dos santos; na verdade, a vida impõe confusões exclusivas aos homens.
Sem a mãe e mandado pelo padrasto para trabalhar na cidade, a criança termina marginalizada: roubam-lhe as poucas moedas que tem no bolso e sobra quilômetros de estrada a percorrer, cada vez mais esfarrapado, para depois chegar, sabe-se lá como, à casa da tia (Edna May Oliver) que espanta as mulas que invadem seu gramado, raivosa e justa.
Em um filme no qual a criança protagonista pode ser confundida, em momentos, com um mini-adulto, outro adulto ocupará o lugar da criança: no último plano, o close de Lennox Pawle, deixando-nos muito claro do que trata esse filme especial. E quando se apaixona e decide se casar, Copperfield encontra na mulher (Maureen O’Sullivan) alguém que nada sabe fazer senão embalar seu cão, criança em corpo adulto.
Para descobrir as ironias e tragédias que compõem a vida adulta, a personagem-título será obrigada a confrontar, na mesma noite, a morte de dois homens: o amigo dos tempos de escola e um marinheiro que perdeu a mulher para o primeiro. Outra vez não pode evitar o pior: a morte dos homens é resultado de uma história quase secundária, na qual a participação de Copperfield resume-se ao peso de ter aproximado seus agentes.
Cukor é um grande diretor de atores. Destaca-se, entre outros pontos, na maneira como faz a amizade entre dois amigos parecer mais do que é, como se eles – Lawton levado a conhecer as aventuras adultas graças aos passaportes do suposto iniciado feito por Hugh Williams – estivessem ligados há muito tempo. Em um filme apressado, seu diretor consegue nos fazer acreditar nos sentimentos que aproximam suas criações.
(The Personal History, Adventures, Experience, & Observation of David Copperfield the Younger, George Cukor, 1935)
Nota: ★★★★☆
AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

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