Amor, Sublime Amor, de Steven Spielberg

Não há um filme de Steven Spielberg que não busque a perfeição técnica. Talvez isso explique por que muitos preferem seus primeiros trabalhos, como Encurralado e Louca Escapada: eles eram mais “sujos”, mais desajeitados, não tinham um compromisso com o encaixe perfeito. E alguns dirão que isso se deve a recursos menores.

Em Spielberg há espetáculo. Tudo tem de estar no lugar certo: os gestos, a iluminação, o figurino. De tal luxo poucos dispõem. Em seu balaio sacamos obras que vão da ficção científica ao Holocausto. Para um cineasta que ama cinema clássico e cresceu os vendo, que se banhou explicitamente em John Ford em Cavalo de Guerra e Lincoln e em David Lean em Império do Sol, ainda faltava fincar os pés no musical.

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Em certo sentido, Amor, Sublime Amor – pela música, pela coreografia, pela bela falsidade assumida seja em cores berrantes, seja em sombras ao pé de um prédio aos pedaços – é a consumação desse desejo do menino Spielberg e seu cinema de sonhos – mais do que em uma caixa de bugigangas que é, por exemplo, o recente Jogador Nº1.

Seu desafio é criar humanos críveis e tê-los em cena em meio a toda a técnica e efeitos não menos deslumbrantes. Não raro consegue. Amor, Sublime Amor, com o texto de Arthur Laurents, músicas e trilha de Leonard Bernstein, letras de Stephen Sondheim, tem nas canções e na dança o passaporte rápido ao sonho – ainda que atravessado pelo ódio e pela violência cultivados nos imigrantes polacos e porto-riquenhos, pelo cenário caótico de prédios demolidos para a chegada de um grande empreendimento.

Nessa adaptação de Tony Kushner, vemos com mais clareza os problemas do mundo real sem desprezo às linhas gerais do musical. A base de Shakespeare continua a fazer sentido: é do ódio irracional que trata essa história. Mais que aliviar os choques, a música antecede o conflito, dá ordem à desordem, é fundamental ao espetáculo de Spielberg.

Os briguentos e sujos de poeira, pelas ruas, de repente começam a deslizar os corpos, a girá-los, a se revelar bailarinos no espaço em que não deveriam caber: o palco é agora qualquer lugar, e as ruas convertem-se em um palco de estúdio, em um mundo passado que não existe mais, de comerciantes simpáticos, crianças negras sorridentes.

A poeira é fruto dos prédios que tombam. Alguns jets, a gangue de descendentes europeus, trabalham na construção civil. Brotam do chão, das máquinas, dos montes de pedra que simbolizam a abertura; ao invés das imagens da metrópole do alto, como na versão de 1961, temos agora a metrópole em suas partículas, restos, em seu pior.

Os Jets brigam com os Sharks para a reconquista do território. O imigrante porto-riquenho é o “outro” que cresce de forma desenfreada, rouba empregos, atrapalha a paisagem e, por sua vez, protesta contra a sanha imobiliária. Na luta entre gangues, um dos pontos altos da obra, a arena é um galpão com montanhas de sal, o que nos remete à passagem bíblica que fala do “sal da terra”, de que todos devem dar “sabor” e “fertilidade” ao espaço em que pisam, contraponto às mortes que ocuparão o terreno. E todos descendem do mesmo sal.

A relação entre Tony (Ansel Elgort) e Maria (Rachel Zegler) transcende o físico, é feita de reações inocentes, contraponto à de Anita (Ariana DeBose) e Bernardo (David Alvarez), puro calor, às portas fechadas, proibida para o material em questão.

Quando as gangues combinam um confronto, Tony tenta, em vão, impedi-lo – e, em vão, tenta não ser parte dele. A tragédia shakespeariana torna-o um assassino sem que o seja, e nem isso será capaz de desmontar os sentimentos da menina Maria, que o espera na escada de incêndio, ao fundo de seu prédio, no beco de estruturas metálicas e grades que ele escala.

Comparações com o filme de 1961, dirigido por Jerome Robbins e Robert Wise, são inevitáveis. O filme clássico – quando os musicais faziam algum movimento de renovação, no início dos anos 1960 – é mais quente, mais vermelho, em certo sentido mais apaixonado; o efeito metálico e as luzes contra a lente, da fotografia de Janusz Kaminski, tornam o filme de Spielberg em alguns momentos mais frio e pessimista.

Nesse baile-confronto, esforçamo-nos para enxergar o contraditório. O pior das gangues de rua não se desprende nunca da ingenuidade dos que ainda cantam e dançam, como se quase todas as personagens – à exceção do policial, que não canta e, por isso, devolve-nos ao mundo real – fossem crianças sem direção. Spielberg adora-as. Fez e continua fazendo delas o fulcro de seus filmes e de sua relação já longeva com nós, espectadores fiéis.

(West Side Story, Steven Spielberg, 2021)

Nota: ★★★★☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

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