Como Lucille Ball, Nicole Kidman é a boneca de fala automática, de expressões que incluem olhos arregalados de surpresa ou dúvida. Em poder de seu papel mais famoso, em I Love Lucy, ela vai um pouco além e faz com que todas essas expressões fiquem ainda mais exageradas: sabe, claro, que está sendo vista, e espera pelo riso da plateia.
Não há exagero em Kidman; há precisão. Sua atuação é incrível. Em um filme sobre a falta de limites entre a ficção e a realidade, no qual a vidinha engraçada e perfeita de I Love Lucy é, à sua maneira, a correção à vida de imperfeições de seu casal real, faz sentido que Ball leve aos bastidores e à vida privada um pouco (ou muito) de sua criação.
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A América boba da tela quadrada e em preto branco encontra essa brecha: a ausência do pensamento crítico, do sexo, da gravidez e, não fosse pelo empenho da mesma atriz, da latinidade. Seu marido, Desi Arnaz (Javier Bardem), só ganhou o papel central porque a esposa fez disso a condição para embarcar no projeto.
O resultado é a maior audiência da televisão americana. Apresentando os Ricardos tenta nos dar um panorama do que foi esse show, com a subida de Ball e seu encontro com o “enomorado do mundo” Arnaz. Sem julgá-los, a ponto de mantê-los na dubiedade da estrela, seus amores, frustrações, jogos e implicâncias com pequenas coisas que parecem mudar nada.
Ao mesmo tempo em que sobrevoa parte da vida de Ball e Arnaz, o diretor e roteirista Aaron Sorkin explora uma semana decisiva na vida de ambos, quando a atriz é acusada de comunista. Na época do macartismo, isso poderia custar uma carreira. Ball deixa claro que, no passado, por influência do avô, teria votado em um candidato comunista.
Quase vinte anos depois, o mundo é outro. A Guerra Fria cobra seu preço. O passado – ou a escolha do “quadradinho errado”, como reafirma Arnaz – cobra seu preço. Curioso é que Ball não tem problemas, em privado, para assumir que escolheu aquele “quadradinho” e o depositou na urna de consciência livre, sem arrependimentos.
No espaço do espetáculo em que as personagens estão confinadas, não será possível exercer a opinião real na esfera pública. Para sobreviver àqueles dias de tensão, Ball, como nunca, precisará de Arnaz, a face malandra e maliciosa que a completa – ainda que Sorkin, em decisão inteligente e controle nunca visto em sua carreira de diretor, evite transformá-lo no completo cafajeste ou fazê-lo repousar à sombra da mulher.
O filme é de ambos. Ball é um enigma impenetrável. Parece saber de sua própria condição de figura mítica, a ponto de precisar interpretá-la e, como já se disse aqui, perder-se na separação entre criadora e criatura. Até chegamos a pensar que ela – com inclinação natural à forma cênica, ou, como diz Arnaz, “cineticamente dotada” – é dessa forma.
E é justamente a forma que a faz saltar do rádio à televisão. Quando se apresenta a uma plateia e fala ao microfone, tempo em que as transmissões de rádio tinham público em estúdio, dois executivos da CBS percebem nela talento desigual. O faro estava correto. Aquele ser moldado a viver um único papel nasceu para a era das imagens em movimento e no cinema tentou carreira sem muita sorte.
Com Ball, Arnaz, toda a estrutura da televisão e, a somar, o macartismo, Sorkin enxerga a ponte a uma interessante abordagem sobre como o espetáculo rende-se à política e, a certa altura, integra-a ao seu meio – dos menores aos maiores diálogos, das leituras às marcações de cena de um dos vários episódios de um sitcom.
A questão política terá de ser resolvida, por isso, na arena do show. E cabe a Arnaz a solução, quando resolve desmentir as acusações de um jornal sobre as posições políticas de Ball. À pequena plateia que acompanha a gravação do programa e a alguns jornalistas, explica que a mulher é uma verdadeira americana e que investigações não provaram nada. Aos influenciados da plateia, frequentemente resumidos ao americano médio, diz que Ball e sua Lucy – sobretudo a segunda – estão ilesas à ignomínia do real.
(Being the Ricardos, Aaron Sorkin, 2021)
Nota: ★★★☆☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
Os 7 de Chicago, de Aaron Sorkin