Marte Um, de Gabriel Martins

Diferentes filmes que colocaram o Brasil na tela têm elementos em comum, como o samba, a religião e o futebol. Impossível contorná-los. De Rio, 40 Graus a Marte Um, eles reforçam que muito não mudou a despeito das tantas mudanças em um país com mais baixos do que altos, de tragédias sociais e reinícios desesperançosos.

Marte Um começo onde Rio, 40 Graus termina: nas estrelas. No filme mineiro de Gabriel Martins, um menino negro observa o céu, à noite, enquanto ouvimos a comemoração da eleição do presidente Jair Bolsonaro, de extrema direita. Seus olhos só têm um foco; sua mente, sabemos, não escapa àquela escuridão de pontinhos brilhantes.

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O filme de Nelson Pereira dos Santos termina com o olhar da câmera, seu olhar, a um país de desigualdades que, ano após ano, década após década, insiste em não olhar a si mesmo: termina no samba, na favela, em um Rio de Janeiro visto do alto. Se Nelson ainda deixa um ponto de esperança, de recomeço, Martins joga em campo oposto: a eleição de um extremista coincide com o olhar de uma criança que quer ir embora.

E por que, com tantos destinos possíveis, em planeta tão vasto como o nosso, a criança negra, de periferia, quer ir para Marte? Ela descobriu, em pesquisas na internet, que uma missão chamada Marte Um, prevista para 2030, dará início à colonização do planeta vermelho. Ela quer ir embora, em um gesto (in)consciente que diz mais sobre suas raízes do que sobre seu destino e o que pensa do futuro. Menos que sonho, é desejo, sobrevivência.

Como no filme de Nelson, há uma criança negra no centro da história. E seu olhar. E outras personagens que polarizam o drama. O Brasil, sabem esses realizadores, é uma colcha de retalhos na qual, não raras vezes, a tristeza abre-se à festa, e a comédia pode ser involuntária tamanha a estranheza da dimensão real. São histórias que não levam a lugar algum senão a uma esperança de recomeço, ao mesmo morro, à mesma laje, ao mesmo quintal.

Em cena, o menino (Cícero Lucas) que sonha com Marte; seu pai (Carlos Francisco), que sonha com o filho nas primeiras fileiras de seu time do coração e com o sucesso do rebento; sua irmã (Camilla Damião), que engata uma relação com outra mulher e se prepara para sair de casa; sua mãe (Rejane Faria), que, certo dia, ao ser vítima de uma “pegadinha” da televisão, passa a ter ataques de pânico e busca ajuda religiosa.

O menino Deivinho quer ir a Marte, mas ainda não juntou coragem para descer uma ladeira de bicicleta. Do depósito de sucata perto de sua casa, retira peças para construir seu próprio telescópio. No jogo de várzea ao qual é mandado mais pela vontade do pai, joga quando tem vontade, nos dias em que não parou para pensar no destino que querem para ele.

O filme de Martins é maior em sua realidade intrínseca, sua capacidade de estampar pessoas verdadeiras na tela, e até nos faz rir (sem qualquer deboche) com tamanha revelação e reflexo; perde força quando joga com as várias situações que se entrecruzam, muitas delas manjadas, a começar pelas diferentes intenções do pai e do filho, pelo movimento da irmã emancipada, pela mãe (e pelo pai) que se assusta com esse mesmo movimento.

Mas é com esse emaranhado de dramas sem muita solução que o filme vence o lugar dessas “pessoas comuns”. Ou seja, no Brasil insuportável de uma elite branca, racista, de um presidente negacionista e autoritário, Martins leva-nos às boas e velhas histórias que crescemos vendo, com enlaces que, em muitos momentos, tranquilizam e até dão a impressão de um certo descompromisso com o drama real.

Talvez porque o drama dessa gente negra da periferia é, em certo sentido, também o drama do galã e da mocinha da novela. E essa mesma gente negra, a nós, em nenhum momento deixará de ser real. Talvez esteja aí a mágica do cinema de Martins, que se dobra a algumas convenções narrativas – um pouco como no anterior No Coração do Mundo – sem deixar de ser real, palpável, sem que precise politizar seu filme pela fala das personagens.

Aqui ninguém fala de Bolsonaro. Ninguém lamenta os rumos tomados, ainda que o olhar do pai e de seu amigo, enquanto almoçam e assistem à posse do presidente, indique algum descontentamento. A desorientação da família pobre e negra talvez nada tenha a ver com os rumos estranhos dessa política que passa ao lado, ainda que nada fuja ao espírito de um tempo em que o líder máximo da nação em nada espelha essa gente comum.

Os risos que provocam algumas passagens de Marte Um, como o momento em que a mãe de família vinga-se da equipe de televisão responsável por lhe pregar uma “pegadinha”, devem-se ao que aprendemos a ver na tela, a anos e anos de uma mídia que nos “ensinou” a rir, e que agora passa ao outro lado: é ela própria o nosso ridículo.

Rimos de um Brasil que não deu certo e, no fim, com o olhar às mesmas estrelas, ainda permite sonhar. Martins não tem todas as respostas. Prefere o futuro aberto, na medida que até o pai – o mesmo que sonhava com o sucesso do filho no mundo do futebol – deixa-se tomar pelo estado em que tudo é possível quando nada – a não ser os pontos brilhantes no fundo escuro do céu – passa pelos olhos dos terráqueos em questão.

(Idem, Gabriel Martins, 2022)

Nota: ★★★☆☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
Daria um outro filme a história da equipe de Rio, 40 Graus, por Janio de Freitas

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