O Pancho Villa relaxado, mulherengo e assassino sem remorso é naturalmente uma figura falsificada. O que mais pesa contra ele – o homem, o mito, o filme – não é exatamente a maneira como algumas situações são retratadas, mas como somos levados a enxergar alguém até mesmo amável e engraçado por trás do revolucionário matador.
Há passagens em Viva Villa! que parecem pertencer à comédia incorreta, à paródia sobre latinos beberrões que matam por pouco ou nada, digna de Mel Brooks. O curioso é que a produção de David O. Selznick para a MGM e a direção de Jack Conway e Howard Hawks (sem crédito para o último) não parecem se preocupar com esse estereótipo pouco humanista, a dar vazão ao mexicano abobalhado, ignorante, sujo, feito só para a ação.
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A carnificina é parte da vida desse México profundo de vilarejos invadidos, de casebres e montanhas dos quais sai o povo pobre com alguma arma escondida, a gritar “Viva Villa!” e seguir o líder. As armas estão ali, à espera do chamado – embaixo da cama, de uma telha, em qualquer lugar. Não mais que um exército popular violento.
O início mostra o que os poderosos fazem com o povo. De uma hora para outra, um rico dono de terras confisca pequenas propriedades de pessoas simples – entre elas o pai do protagonista. De cima, a câmera revela-nos a massa humana em movimento, em direção à casa grande do criminoso rico. A insistência dos pedidos converte-se em castigo: o pai de Villa é condenado a 100 chicotadas aos olhos dos demais.

O garoto assiste à morte do pai e, à noite, pelas sombras, transforma-se em assassino: esfaqueia o algoz pelas costas. Tal vingança pretende explicar tudo: Villa é produto da injustiça do rico contra o pobre, da carnificina posta na pele, da tortura aplicada ao humilde, enquanto um padre, ao canto, dizia que o melhor era aceitar as coisas como são.
A revolução é o caminho oposto, e com ela vêm as mortes com as quais a face de Wallace Beery não combina. Na pele de Villa, ele movimenta os músculos da testa para encontrar expressões fortes, entre o idiota e o astuto, o honesto que tem, ao que parece, motivos para matar – a começar por um cinema sem coragem de condená-lo, ou apenas humanizá-lo.
É verdade que o cinema clássico prefere formas fáceis, acabadas, o que a presença de Berry à frente desse rascunho distante da realidade só faz confirmar. A revolução dos outros, dos latinos, tem sua bestialidade naturalizada, tão distante que parece ser aceita; matar alguns, ou muitos, enfileirados, dava-se como tarefa fácil, corriqueira.
O filme não esconde nunca o filtro americano. É uma diversão ágil de Hawks, com roteiro de Ben Hecht, atrapalhada pelo excesso de letreiros e passagens rápidas cortadas por elipses. Ao lado do herói há, bem postado, o jornalista americano em constante embriaguez, responsável por traduzir aos seis milhões de exemplares de seu jornal a revolução do vizinho selvagem.
Outra vez nas bordas do cômico, tenta-se justificar quem é o Villa em cena: o jornalista estará ao lado seu lado em momentos importantes e chega a se vestir de padre para celebrar seu casamento, além de induzir a invasão de uma cidade quando se dá conta de que errou o nome do local invadido anteriormente, no jornal impresso aos leitores do norte.
Apela à vaidade do matador, que muda a rota e cumpre o que é notícia dada: aceita, aos pedidos de um discípulo de Hearst, fabricar a guerra para alimentar seu mito e dar aos leitores americanos exatamente o oposto do pândego entregue por Hawks e Hecht, ainda que, nos dois casos, a falsificação é mais do que certa.
Em Cinema Clássico Americano – Gêneros e Gênio de Howard Hawks, Carlos Melo Ferreira refere-se ao Villa de Berry como “criança caprichosa”. Não há definição melhor. Ao longo de sua jornada, a criança resiste a amadurecer. A revolução é seu parque de diversões, no qual faz o que quiser: rouba, mata, passa por cima de todos e trapaceia.
A vida adulta cobra seu preço: ao vencer o último obstáculo e chegar à presidência, o protagonista percebe a impossibilidade de conviver com tempos de paz. Com regras. Os “homens de cavanhaque”, polidos, só falam em orçamento. Criança como é, Villa manda imprimir dinheiro para resolver o problema. Pagará a gráfica com o papel que esta fornece. Ao recusarem o negócio, manda prender os comerciantes. Papel ou dinheiro de verdade, pouco importa: quem está no comando impõe suas regras.
(Idem, Jack Conway, Howard Hawks, 1934)
Nota: ★★★☆☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

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