Caro Pasolini, vi O Deserto Vermelho. Por que e com qual critério o Leão de Ouro foi entregue a Deserto Vermelho, e não a O Evangelho Segundo São Mateus? Quando pergunto isso aos intelectuais, eles me olham e me respondem como se eu fosse uma imbecil. E sei que não sou imbecil e, para mim, O Deserto Vermelho (ou, melhor, cinza) é apenas a história dolorosa de uma pobre criatura que bateu a cabeça em um acidente de carro e saiu cedo demais da clínica. Já a sua obra é luz nas trevas. Que você “acredite” ou não, o importante é que Jesus de Nazaré, chamado de Cristo, voltou para nós, para a terra, através desta sua obra. Assim será para os irmãos vindouros. Console-se; Deus, para revelar-se às criaturas, sempre escolhe os menos adequados. Você tem olhos e coração para compreender isso.
– Maria Bicci, comunista cristã – Grassina, Florença.
Agradeço a você por ter “torcido” por mim contra Antonioni. Mas, aqui, não por lealdade (a lealdade é um conceito feudal e perigosamente retórico: quantos jovens, por lealdade, tornaram-se repubblichini?), mas por dever de clareza e de liberdade crítica, tenho que polemizar com você, em favor de Antonioni.
Pois bem: eu, como se diz, tinha minhas reservas contra O Deserto Vermelho. Por dentro e por fora. Por dentro: eu gostei muito pouco de A Noite, e achei O Eclipse detestável. Nestas obras, a meu ver havia dois conteúdos: um formalístico (ou seja, a mesma forma como conteúdo) e um pretextual (os problemas da sociedade moderna a um nível avançado), alheios um ao outro. Assim, o primeiro era reduzido pelo segundo a uma prática estilística privada de cultura, estetizante como podia ser em um documentarista dos anos 1930; e o segundo era reduzido pelo primeiro a uma problematização genérica e sem fundamento. Então, o conteúdo formalístico me parecia um subproduto provinciano da cultura francesa; e o conteúdo social, substancialmente amadorístico.
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Minha avaliação sobre estes filmes, antes de ver O Deserto Vermelho, não havia mudado. E era confirmada pela avaliação dos outros, tanto as favoráveis quanto as desfavoráveis. Em poucas palavras, eu achava que a dualidade da qual falava houvesse se agravado no novo filme, no mínimo por desgaste da inspiração: ou seja, pensava que o formalismo, com a cor, houvesse se tornado ainda mais formalístico, aplicando-se como uma crosta estranha, acima do pretexto sociológico exausto da alienação.
Eu estava errado. Finalmente vi O Deserto Vermelho, e pareceu-me um filme belíssimo. Deve ter acontecido comigo uma disposição subjetiva favorável. Por exemplo, entrei na sala parisiense (outro elemento favorável) já sabendo que não gostaria do diálogo (com seu quê de desajeitado, constrangedor e um pouco ridículo, que encontra correspondência apenas em certos hendecassílabos de Quasímodo…), e, por isso, eu estava disposto a abafá-lo, a não objetá-lo etc. etc.
Creio, porém, que não são usados elementos passionais de nenhum tipo, na minha avaliação geral. Tanto é verdade que não gostaria de me deter nos pontos “poéticos” do filme, e há muitos deles, e convincentes. Por exemplo, aquelas duas ou três flores violetas desfocadas em primeiro plano, no enquadramento em que os dois protagonistas entram na casa do operário neurótico; e aquelas mesmas duas ou três flores violetas, que reaparecem no pano de fundo – não mais desfocadas, mas absurdamente nítidas – no enquadramento da saída. Ou a sequência do sonho: de repente – depois de tantas delícias de cores – concebida quase em tecnicolor, assim como pode conceber uma praia magnífica um menino que viu coisas análogas nos filmes de quadrinhos sobre o Haiti e o Havaí (mas existe um enquadramento, filmado, eu acho, com uma 300, uma objetiva documentarística e, portanto, realística – do navio no mar agitado – que contradiz a sequência em seu coração; lhe dá uma palpitação inquietante de verdade, que rompe sua superfície delicadamente de quadrinhos). Ou a sequência da preparação para a viagem à Patagônia: os operários escutando etc. etc.: aquele estupendo primeiro plano de um operário pungentemente “verdadeiro”, seguido por uma absurda panorâmica ao longo de uma faixa azul sobre a parede de cal branca do depósito. Há uma profunda, misteriosa, de tanto em tanto altíssima intensidade, no formalismo que acende a fantasia de Antonioni. E que a base do filme seja totalmente este formalismo, finalmente rigoroso e levado até a poesia, é demonstrado por uma olhada na edição: em que predominam duas operações estilísticas que revelam a superioridade absoluta do mundo como espetáculo estético sobre a história e sobre os personagens. Estas duas operações são: 1) A aproximação sucessiva de dois pontos de vista de diversidade insignificante sobre uma mesma imagem: ou seja, o suceder-se de dois enquadramentos que representam a mesma situação, primeiramente de perto, depois um pouco mais de longe, ou, antes frontalmente e depois um pouco mais obliquamente; ou, até mesmo, no mesmo eixo, mas com duas objetivas diferentes. Daí nasce a insistência que se torna obsessão, enquanto mito da substancial e angustiante beleza autônoma das coisas. 2) A técnica do deixar entrar e sair os personagens do enquadramento, pela qual, de modo às vezes obsessivo, a edição consiste em uma série de “quadros” que eu diria informais, onde entram os personagens, dizem ou fazem algo, e depois saem, deixando de novo o quadro à sua pura, absoluta informalidade; com o qual acontece outro quadro análogo, onde os personagens entram etc. etc. Assim, o mundo apresenta-se como uma mítica beleza pictórica, que os personagens invadem, é verdade, mas adaptando-se eles próprios àquela beleza, em vez de desconsagrá-la com sua presença histórica.
A edição, portanto, demonstra por si só, claramente, a prevalência, neste filme, de um mito formalístico obsessivo, finalmente libertado, e, portanto, poético.
Mas como foi possível esta libertação para Antonioni? Foi possível criando a “condição estilística” daquilo que nos romances se chama “discurso livre indireto”, e que nos filmes, por analogia, poderia ser chamado de “visão livre indireta”. Ou seja, o autor vê o mundo através dos olhos de seu personagem. Ao discurso direto corresponde, no cinema, a chamada “subjetiva”: a câmera substitui-se “materialmente” aos olhos do personagem.
Em O Deserto Vermelho, Antonioni não coloca mais, como havia feito nos filmes anteriores, sua visão do mundo em um conteúdo vagamente sociológico (a neurose de alienação), mas olha o mundo através dos olhos de uma doente (não acho que o acidente de carro foi casual, mas foi, provavelmente, uma tentativa de suicídio da mulher). Através deste mecanismo estilístico, Antonioni libertou a si mesmo: pôde finalmente ver o mundo com os seus olhos, porque identificou sua visão delirante de estetismo com a visão de uma neurótica. Tal identificação é, em parte, arbitrária, é verdade, mas a arbitrariedade, neste caso, faz parte da liberdade poética: uma vez encontrado o mecanismo liberatório, o poeta pode se inebriar de liberdade. Não importa se é ilícito fazerem-se coincidir os “quadros” com os quais o mundo se apresenta a uma neurótica real, com os “quadros” com os quais o mundo se apresenta a um poeta neurótico; aquilo que nesta operação há de ilícito torna-se o escorralho não poético e não cultural do filme; aquilo que, por sua vez, há de lícito é sua “embriaguez poética”. O importante é que haja uma possibilidade substancial de analogia entre a visão neurótica de um poeta e a de seu personagem neurótico. Não há dúvida que tal possibilidade de analogia existe. E sua contraditoriedade é, afinal, um fato cultural, que em vez de objetivar-se no personagem, subjetiva-se no autor. De modo que, justamente, pelo extraordinário êxito formalístico, não é desta vez nem ilícita e sem fundamento a impostação do tema sociológico da alienação.
Defendo O Deserto Vermelho. (Vie Nuove, 7 de janeiro de 1965. Tradução de Aline Leal para o catálogo da mostra Aventura Antonioni.)

Veja também:
Teorema, de Pier Paolo Pasolini