Rio, 40 Graus: da censura à liberação

Por Helena Salem

Em 26 de agosto de 1955, a Censura Federal liberou Rio, 40 Graus, proibindo-o apenas para menores de dez anos. Nelson [Pereira dos Santos, diretor do filme] negociou com a Columbia Pictures do Brasil a distribuição no país e no exterior. Faltava exclusivamente a definição da data e circuito de lançamento. Doce ilusão. A 23 de setembro daquele ano, quando no casarão todos se preparavam para comemorar o aniversário de Laurita [mulher de Nelson], bolo feito e tudo, Nelson chega com a notícia: “O Rio, 40 Graus foi proibido”. O coronel Geraldo de Meneses Cortes, chefe do Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP), decidira interditar a exibição do filme em todo o território nacional. E por quê?

Bem, soube-se que o coronel determinara a proibição antes mesmo de ter visto o filme, a partir da denúncia de um “amigo” (de nome nunca revelado), segundo a qual, ao que parece, tratava-se de obra feita por “elementos comunistas”, com “dinheiro de Moscou”. O fato é que o truculento coronel só assistiu ao filme no dia 26 de setembro, na cabine da Columbia Pictures, numa sessão em que o próprio Nelson estava presente. Ele conta como foi: “Nós caímos na armadilha, concordamos em mostrar o filme sem os nossos advogados presentes. O Cortes estava com a mulher e mais uns caras da polícia. Quando terminou, ele se levantou, gritando: ‘É pior do que eu imaginava!’. Ele dizia que o filme tinha uma técnica perfeita igual à de dois filmes tchecos que ele tinha apreendido. Que eu tinha feito aquele filme porque era paulista, era um filme que não mostrava ninguém trabalhando. Eu expliquei que se passava num dia de domingo, e mesmo assim os meninos trabalhavam, os jogadores de futebol também. Num certo momento ele vacilou, disse que talvez se eu colocasse um texto no início dizendo que era domingo ele liberasse. Eu disse que tudo bem, colocava. A mulher dele se entusiasmou, falou ‘isso Geraldo’. Daí ele ficou puto de novo, e disse que não, que ia proibir mesmo o filme. Ele era baixinho, mas berrava como um louco. O problema dele era a ‘técnica perfeita’ do filme. Ele nunca tinha visto filme brasileiro antes, pra ele aquilo só podia ser coisa de comunista tcheco, eu não podia ter feito sozinho. Mas eu tava lá com a relação de notas de todos os cotistas, provando como tinha feito o filme”.

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Após essa sessão, Cortes deu em entrevista coletiva à imprensa as razões de seu gesto: “Sou chefe de polícia e, pelo regulamento do DFSP, tenho autoridade para proibir a exibição do filme Rio, 40 Graus, que tem como fim a desagregação do país”. E mais: “O filme só apresenta os aspectos negativos da capital brasileira, e foi feito com tal habilidade que serve aos interesses políticos do extinto PCB”. O coronel explicou que sua decisão se baseava no artigo 272, do regulamento da polícia, que lhe dava poderes para cassar a aprovação da Divisão de Censura, se a defesa da moralidade e instituições o exigisse.

Entre as objeções de Cortes, constava o título do filme: no Rio de Janeiro, segundo ele (e apenas ele), nunca havia feito 40 graus (no máximo 30,7 graus!). Além disso, o filme era desprovido de enredo, somente “uma sucessão de flashes que mostram o Rio de Janeiro desorganizado e com as suas misérias. (…) Os meninos que vendem amendoim pela cidade são vítimas de um rapaz que lhes extorque dinheiro”. Dizia ainda que ele ofendia estrangeiros de países amigos, ao colocar um americano dando esmola e um sírio explorando a luz no morro. “Tudo isto não existe” – pontificava o policial. Na sua opinião, “a figura de um ‘coronel’ do interior, inculto e boçal, e apresentado como deputado federal” significava “um achincalhe imperdoável à Câmara dos Deputados”, bem como “os diálogos são na pior gíria dos marginais, em substituição à língua vernácula”. O argumento mais incrível se referia ao final do filme, quando a câmera faz uma panorâmica da cidade. Cortes “descobriu” que, no exato momento em que aparece o Cristo Redentor, a letra da música de Zé Kéti diz “eu sou o rei dos terreiros”. Ou seja, Rio, 40 Graus era também sacrílego!

Presente a essa entrevista, estava o Pompeu de Sousa, chefe de redação do Diário Carioca, que se tornaria um líder da campanha a favor da liberação de Rio, 40 Graus. A presença de Pompeu – inesperada, porque geralmente às entrevistas de chefes de polícia só compareciam repórteres do setor policial, com frequência iniciantes, os “focas” – causou a maior confusão nos propósitos de Menezes Cortes. O coronel solicitara ao governo do presidente Café Filho que a coletiva fosse gravada e divulgada pela emissora oficial, a Rádio Nacional, justamente para que os seus pontos de vistas tivessem ampla repercussão. O tiro saiu pela culatra: Pompeu de Sousa travou implacável debate com Menezes Cortes, pondo a nu todo o absurdo de sua argumentação. Levado ao ar, o debate repercutiu sim, mas muito mal para o chefe de polícia, que aí se enraiveceu de vez.

Por outro lado, a campanha para liberar o filme se constituiu talvez num dos mais amplos e importantes movimentos da intelectualidade já realizados no país. Pompeu teve um papel fundamental. E ele sequer conhecia Nelson até que este, humildemente, adentrou dois dias depois da proibição no Diário Carioca, acompanhado de Jece Valadão e Glauce Rocha. Nelson expôs o caso ao crítico de cinema Décio Vieira Otoni e este, rapidamente, transmitiu-o ao chefe de redação. Conta Pompeu: “Vi aqueles três jovens magrinhos, com ar faminto… eu estava muito ocupado, como sempre, e então disse para o Décio: escreve uma matéria esculhambando com o chefe de polícia”. Mas não foi o suficiente para Nelson. “Muito timidamente – prosseguiu o jornalista – ele me falou: ‘Doutor Pompeu, eu quero pedir ao senhor que não mande escrever nota sobre o chefe de polícia, eu quero lhe pedir que o senhor veja o filme’.” Em meio a todos os seus afazeres, o jornalista considerou absolutamente inviável a proposta daquele jovem que, no entanto, insistia: “O senhor não leva nem duas horas, nós saímos daqui, vamos de carro lá no laboratório que tem um projetor, e voltamos.”

Ante tal persistência, Pompeu acedeu: “Fiquei comovido com os meninos. Num primeiro momento, eu tinha tido uma atitude preconceituosa, de desconfiança, pensando ‘tão novinho esse menino e já dando uma de Lulu de Barros’. Mas ele me comoveu, com aquele ar súplice”. O jornalista viu o filme, e o resultado não poderia ser melhor: “Gamei. Fiquei possuído pelo maior entusiasmo”.

E aí? “Saí dali, pus as vestes de D. Quixote, elmo, lança, e, em vez de mandar o Décio escrever um artigo esculhambando o chefe de polícia, escrevi eu mesmo uma matéria na primeira página do jornal”. E o Diário Carioca possuía uma forte influência política no Rio.

Começa então a mobilização. No mesmo dia 26 em que o coronel assistiu reservadamente a Rio, 40 Graus, convocou-se uma exibição privada do filme na Associação Brasileira de Imprensa. Cerca de mil pessoas foram convidadas, entre jornalistas, escritores (como o poeta Manuel Bandeira), pintores (como Jenner Augusto), artistas de cinema e teatro (Eliane Lage, Oscarito, Anselmo Duarte, Eugenio Kusnet etc.), e cineastas. Reconciliado com Nelson, Alex Viany integrou, com José Carlos Burle e Ciro Cury, a comissão que organizou o ato na ABI. Alex chegou ao ponto de declarar: “Não hesito em colocá-lo entre os cinco mais importantes filmes até agora produzidos no Brasil. (…) A ser mantida a criminosa proibição, esse caminho estará barrado. Pessoalmente, deixarei de fazer cinema”.

Menezes Cortes não sossegava. Embora sua proibição não incluísse as exibições privadas, ele impediu a projeção na ABI, quando o saguão do prédio já se encontrava lotado, com o público esperando para entrar no auditório. Justificativa? “Publicidade à sessão privada.” Jece Valadão se dirigiu aos presentes, subindo numa cadeira no próprio saguão da ABI, para agradecer a solidariedade e comunicar que vários parlamentares haviam assinado um documento de interpelação ao ministro da Justiça Prado Kelly sobre a proibição. No mesmo momento, os intelectuais presentes resolveram também enviar um telegrama de protesto ao presidente Café Filho e a Prado Kelly, solicitando “as necessárias providências” para que fosse cancelada a portaria do chefe de polícia que interditou o filme, a qual representava “perigoso precedente para atentar contra a liberdade de criação artística e contra a cultura nacional”.

No dia seguinte, 27 de setembro, o escritor Jorge Amado publicou um artigo incisivo no jornal Imprensa Popular, do PCB, intitulado “O caso de Rio, 40 Graus”. Jorge fazia uma verdadeira radiografia da situação política do país, e mostrava como a proibição do filme se inseria nesse quadro mais amplo. Primeiramente, ele apontava “o desejo de liquidar definitivamente nosso cinema”, ao contribuir com a falta de filmes para os objetivos dos produtores americanos de “pôr abaixo” a lei que obrigava a exibição de “uma película nacional para oito estrangeiras”, assim como o intuito de “reduzir ao silêncio os homens da cultura”, a fim de impedir que eles fossem “os intérpretes da vida do país”.

O escritor denunciava depois o golpe da direita em preparação, sendo o gesto do chefe de polícia já parte desse processo. Vale lembrar que o presidente Getúlio Vargas (que voltara ao poder em 1950 mediante eleições livres), se suicidara a 24 de agosto de 1954, quando justamente forças de direita – contrárias ao caráter nacionalista e populista de seu governo – articulavam o seu afastamento, numa manobra golpista. O suicídio de Vargas (que foi substituído pelo vice-presidente Café Filho) conteve o golpe, mas não desbaratou aqueles que o organizavam. Por isso mesmo, Amado acusava como responsáveis pela proibição “os homens do golpe, da entrega do Brasil, da preparação da guerra, os que querem novamente arrolhar os brasileiros e transformar nossa Pátria num cárcere”. E advertia: “Começam com o filme de Nelson Pereira dos Santos para se lançarem, em seguida, contra o teatro e o livro, os quadros e a música. Não estamos longe do tempo do Estado Novo quando os livros não podiam circular e os pintores não podiam fixar num quadro a figura de um negro”. Concluindo, Jorge conclamava todos a se unirem na luta contra “o terror e o obscurantismo”, declarando: “Rio, 40 Graus precisa ser exibido. Porque é um bom filme, obra de talento e de sensibilidade, honesto, brasileiro, patriótico, e porque, ao proibi-lo, estão os homens do golpe iniciando sua luta frontal (…) contra a inteligência brasileira. (…) A luta contra o golpe é uma luta de todo o povo brasileiro, por consequência uma luta dos intelectuais”.

Rapidamente, a campanha assume proporções cada vez maiores. Intelectuais do Rio e São Paulo fazem um amplo abaixo-assinado solicitando “a revogação da medida arbitrária do chefe de polícia do Distrito Federal”, com mais de 300 assinaturas, inclusive 35 deputados. Não é à toa que, em manchete de primeira página, o jornal O Mundo, de 30/9/1955, constata: “Cortes é o maior propagandista de Rio, 40 Graus”. Todos querem ver o filme, multiplicam-se as sessões privadas. Em São Paulo, 150 intelectuais aplaudem de pé Nelson Pereira dos Santos, após uma exibição no Museu de Arte Moderna, constituindo uma comissão de defesa do filme (que conta, entre outros, com o escritor Menotti del Picchia). Uma outra projeção, também na capital paulista, reúne deputados estaduais e vereadores, incluindo o prefeito Lino de Matos, de novo com o maior sucesso.

Como ressaltara Jorge Amado, a luta pelo filme passou a se confundir com o crescente agravamento da situação política. A cada projeção, realizavam-se debates calorosos. Uma grande assembleia teve lugar na ABI, criando-se uma Associação de Defesa do Cinema Brasileiro, presidida por Pompeu de Sousa. Simultaneamente, os advogados Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva, dois dos maiores juristas do país, deram entrada (a 3 de outubro) a um mandado de segurança contra a portaria de Menezes Cortes. Os advogados qualificavam de ilegal, “inteiramente arbitrária” tal portaria, sustentando que ela não tinha poderes para anular uma decisão do Serviço de Censura de Diversões Públicas, o único órgão que, segundo a Constituição, possuía a prerrogativa de vetar ou não um filme. A defesa contida do mandado (enviado para a 5ª Vara Cível, do Tribunal Superior de Recursos) era curta, irretrucável.

Também no exterior a questão ganhou eco e adesão. Intelectuais franceses mandaram para Nelson um telegrama de solidariedade, no qual afirmavam: “Tomando conhecimento da interdição de Rio, 40 Graus, consideramos que todo documento humano e honesto merece ser mostrado. Preocupados com a salvaguarda da liberdade de expressão, pedimos seja suspensa a proibição”. Firmavam, entre outros, Yves Montand, Simone Signoret, Georges Sadoul, André Cayatte, Pierre e Jacques Prévert, Claude Autant-Lara, Paviot e Leons Moussinac.

Nesse ínterim, no casarão da rua Real Grandeza, a penúria não podia ser maior. “Havia dias em que a gente não tinha praticamente quase nada para comer”, recorda Laurita. Quem conseguia algum dinheiro, trazia para a coletividade. A miséria socializada. O fotógrafo Hélio Silva é dos raros a arrumar algum trabalho, enquanto Jece, Nelson e Guido concentram-se basicamente na campanha. Mas a solidariedade das pessoas é grande também em nível pessoal. Guido Araújo conta o caso de um importante arquiteto ligado ao Partido Comunista que, certa vez, parou com o seu Cadillac em frente à casa dispondo-se a ajudar. “Fomos a uma mercearia e fizemos uma grande compra, arroz, feijão, macarrão, óleo, uma feira maravilhosa.” Até o proprietário da casa foi complacente com o atraso do aluguel.

Nem tudo era desgraça, porém, nos tempos em que viveram no casarão. Por exemplo, foi dessa convivência que nasceu a ideia do próximo filme de Nelson: Rio, Zona Norte. Segundo Guido, aconteceu no caminho para um batizado no subúrbio, em que iam a convite de Zé Kéti. “Pegamos o trem da Central e foi nesse lance do batizado que pintou na cabeça do Nelson a história do filme. Aí ele começou a estruturar o roteiro.”

Eleito Juscelino Kubitschek para a Presidência da República, as forças direitistas organizam-se para impedir que ele tome posse, pressionando o ministro da Guerra, Henrique Teixeira Lott, para aderir ao golpe. A 10 de novembro de 1955, realiza-se uma nova sessão privada de Rio, 40 Graus no cinema do Cassino Icaraí em Niterói (hoje sede da Universidade Federal Fluminense), promovida pelo deputado do Partido Socialista, Geraldo Reis, para membros da Assembléia Legislativa. De novo um sucesso, aclamação do público. Pompeu de Sousa, como de hábito, estava presente. Foi ainda na barca Niterói-Rio que ele e Nelson ouviram pelo rádio a notícia: o presidente Café Filho se declarara enfermo, o governo havia sido transferido para o presidente da Câmara, Carlos Luz. “Aí eu disse para o Nelson – relata Pompeu – é o golpe. Esconde esse filme num lugar muito bem protegido e some. A repressão vem feia e forte.” Naquela mesma noite (com a luz da casa cortada por falta de pagamento), Nelson pediu a Laurita que fosse para São Paulo com as crianças no dia seguinte e resguardasse o filme, pois ele, Nelson, desapareceria por uns tempos. Certamente, ninguém conseguiu pregar o olho durante toda a noite.

Pela manhã cedo, Zé Kéti saiu à rua para sentir o clima, a pretexto de comprar leite. Muita tensão, os jornais ainda não haviam chegado às bancas, como deviam. Por volta das sete horas, Zé Kéti chega com a notícia: “Caiu o Governo”. Isto é: o marechal Lott dera o contragolpe, assegurando o direito de Juscelino tomar posse; Carlos Luz fora destituído e o presidente do Senado, Nereu Ramos, ocupava interinamente a presidência da República. Os golpistas teriam de esperar ainda pouco mais de oito anos para atingir seus objetivos.

Com a mudança de governo, caiu também o coronel Menezes Cortes. O processo do filme prosseguiu na justiça, para que ficasse bem clara a ilegalidade da portaria. (Victor Nunes Leal tornou-se depois chefe da Casa Civil de Juscelino.) A liberação de Rio, 40 Graus, no entanto, não tardaria: em 31 de dezembro, a Justiça Federal revogou a censura. Uma festa de três dias na Real Grandeza. Em março de 1956, o filme foi lançado em Porto Alegre, São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, em grande circuito (só no Rio, 20 cinemas). Nas primeiras semanas, um estouro de bilheteria, filas e filas nas portas dos cinemas. Mas a euforia durou pouco. De acordo com Nelson, “as pessoas achavam que o filme tinha sido proibido porque tinha mulher nua, coisas incríveis. Então, saíam decepcionadas do cinema, dizendo que o filme era ruim, um documentário”. De qualquer maneira, ele acabou por se pagar, após dois anos. E Nelson ganhou ainda os prêmios de diretor, filme e argumento do Distrito Federal (Valadão de melhor ator também), que eram em dinheiro. “Com essa grana, e o financiamento da Columbia, eu pude fazer o Rio, Zona Norte e ainda partir para O Grande Momento” (de Roberto Santos, que Nelson produziu).

Nelson Pereira dos Santos – O Sonho Possível do Cinema Brasileiro, de Helena Salem (Editora Record; pgs. 114-125).

Veja também:
A perseguição nazista a Sem Novidade no Front

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