O Contador de Cartas, de Paul Schrader

O jogador não tem casa. De motel em motel, ele cobre com tecido os móveis dos quartos em que se hospeda. Sua intenção é tornar os ambientes impessoais, anulá-los, não permitir que se tenha com o espaço algum vínculo e se retire dele uma história, uma lembrança. Ou que não possa, com seu corpo, misturar-se a moradias temporárias.

O jogador é uma personagem que não quer ter uma história. Ele já teve uma, ou algumas. A principal, descobrimos ao longo de O Contador de Cartas, detém-se ao período em que esteve no Exército Americano, especificamente na prisão Abu Ghraib, na qual participou de torturas a prisioneiros. Dessa experiência ele retirou um trauma; por causa dela, ficou preso pouco mais de oito anos e, na cadeia, aprendeu a contar cartas.

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William Tell (Oscar Isaac), como outras criações de Paul Schrader, pertence a uma linhagem de seres reclusos, donos de seus próprios códigos morais, figuras quase religiosas que não suportam o mundo em que vivem e não unem forças para dar fim a si próprios. São seres bressonianos, almas atormentadas, impenetráveis na maior parte do tempo.

Além dos cômodos sempre iguais, William nutre-se da repetição pelo jogo. Nas mesas dos cassinos, não demonstra euforia com as vitórias que acumula. Faz do jogo uma maneira limpa de sobrevivência à medida que penetra ambientes cheios de luzes, embalados pela promessa de felicidade, da busca do enriquecimento – para todos eles, será sempre o mesmo homem que não se importa com benesses. Quer apenas sair ileso.

Schrader não precisa explicar sua personagem. Permite que pouco de seu lado humano venha à tona e apenas lentamente. São suas relações externas que terminam por explicá-la. Outra vez o homem de Schrader não pode evitar o mundo lá fora. Como Travis Bickle em Taxi Driver ou o reverendo Ernst Toller em Fé Corrompida, ele permite que outros invadam a cápsula que o envolve, que o drama coletivo o intoxique.

No caminho de Tell surge o jovem Cirk (Tye Sheridan). Eles encontram-se quando o protagonista assiste a uma palestra do ex-militar Gordo (Willem Dafoe), um dos responsáveis por implantar a tortura em prisões americanas pelo mundo – entre elas Abu Ghraib. O pai de Cirk suicidou-se após essas experiências. Tell foi preso. Gordo não foi culpado de nada.

O garoto propõe ao jogador um reencontro com o velho militar. O menino quer dar ao homem o mesmo que ele deu aos seus torturados. Tem o plano em mente e, através do celular, descobre onde fica a casa de Gordo. Ao longo dessas conversas, Tell demora para tentar convencer o menino de que a vingança não é o melhor caminho. Ele quer que o garoto retorne à mãe, que recomece sua vida e está disposto a ajudá-lo.

Dar ao menino uma nova possibilidade – uma nova história – é a forma que Tell encontrou para chegar à expiação. É sua experiência final com o mundo que insiste em não se repetir. Ele vive a humanidade – agora um pai, um irmão ou apenas um altruísta – e nela embarca por completo. Além do menino, ele encontra-se, em suas viagens, com uma mulher, La Linda (Tiffany Haddish), que financia jogadores e com quem se envolve.

O jogo permite a aplicação da matemática – o contar das cartas – para tentar driblar o acaso. Tentativa de vencer pela lógica e não depender da sorte. Mas nem sempre isso é possível. Há sempre uma dose de risco, de imprevisibilidade. Schrader, dono de mais um roteiro extraordinário, estabelece um contraponto entre as “artes” de interrogar prisioneiros e jogar cartas. Nos dois casos, aplicam-se métodos, vivem-se repetições.

Esse possível contraponto ajuda-nos a compreender por que o jogo tanto atrai o protagonista de O Contador de Cartas: nas mesas, ele pode continuar a experimentar sua reclusão, a aplicação de sua experiência, de uma fórmula, mas livre da sujeira – das fezes e do sangue – dos porões da vida militar. O cassino tem sua dimensão ilusória, o falso furor representado pelo oponente que veste as cores da bandeira americana e é seguido por fãs.

Com Schrader, a dimensão humana está entrelaçada à histórica. Seus homens solitários sucumbem ao mundo real. Se a sujeira retorna, o passado retorna. Tell está disposto a deixar a mesa de jogos para procurar seu antigo mestre, voltar às sessões de tortura e testar a si mesmo outra vez. Para mais tarde voltar ao cárcere, ao silêncio e, como no encerramento de Pickpocket e Gigolô Americano, receber a visita de quem o entende.

(The Card Counter, Paul Schrader, 2021)

Nota: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
Fé Corrompida, de Paul Schrader

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