Encontro de Nelsons

O cineasta Nelson Pereira dos Santos já era um artista respeitado quando aceitou dirigir Boca de Ouro, baseado na peça de Nelson Rodrigues. Havia dirigido o histórico Rio, 40 Graus, além de Rio, Zona Norte e Mandacaru Vermelho. Boca de Ouro seria seu primeiro trabalho sob encomenda, ou seja, a convite de um produtor.

À época, início dos anos 1960, a notícia de que o cineasta faria um filme baseado em Nelson Rodrigues não caiu bem entre artistas e intelectuais: o primeiro Nelson era um homem de esquerda, o segundo, considerado de direita e reacionário. Além disso, com Rio, 40 Graus, o Nelson cineasta contribuiu com a primeira expressão de um cinema nacional realmente moderno, de claras tintas neorrealistas. Fazer um filme baseado em uma peça de teatro era visto por muitos como uma inclinação a outra arte.

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Boca de Ouro é sobre o chefe do jogo do bicho que dá nome à obra, malandro e rico. O filme tem início com a notícia de sua morte. Jornalistas preparam-se para levantar sua trajetória e, para tanto, tentam entrevistar pessoas que viveram com ele, interpretado por ninguém menos que Jece Valadão, o eterno cafajeste do cinema brasileiro.

Para interpretar a dona Guigui, convocam a beldade Odete Lara, que, na mesma época, esteve no elenco de Bonitinha, mas Ordinária, de J.P. de Carvalho, também com Valadão, também baseado em uma obra de Nelson Rodrigues. Para o papel de Leleco, um jovem Daniel Filho. Como esposa do último, Celeste, a pequena notável Maria Lúcia Monteiro.

O elenco é um grande acerto. A direção do Nelson cineasta capta todo o poder e os tipos brasileiros do Nelson dramaturgo. Toma o melhor da peça e nunca deixa de ser cinema. Os diálogos são potentes, as composições também. Guigui conta ao jornalista Caveirinha (Ivan Cândido) diferentes versões de um crime envolvendo Boca, Leleco e Celeste, e nunca saberemos qual é o verdadeiro – ou se algum é. Nesse texto de incertezas em que ninguém é inocente, nesse jogo psicológico mais complexo do que parece, não perdemos de vista os contornos populares e a brasilidade que lhe é intrínseca.

Até então nenhuma peça de Nelson Rodrigues havia sido levada ao cinema. Sua obra era relacionada ao escândalo, vista como risco por produtores, com medo de um Brasil careta e religioso. Com as mudanças culturais dos anos 1960 e o sucesso de Os Cafajestes, justamente com Valadão à frente do elenco, Boca de Ouro tornou-se viável. Convidado para dirigir, Pereira dos Santos aceitou, mesmo com a atenção voltada a seu filme seguinte, Vidas Secas, baseado em Graciliano Ramos, para muitos sua obra-prima.

Em seu lançamento, Boca de Ouro foi um sucesso de público. Valadão, Odete Lara e um texto de Nelson Rodrigues – muito lido na imprensa carioca da época – parecia mesmo uma fórmula imbatível. A crítica não foi generosa: o Nelson cineasta foi chamado de serviçal do Nelson dramaturgo, o que, com o passar dos anos e algumas revisões, mostrou-se uma injustiça. É uma bela comédia nacional, sofisticada, em momentos excitante, sobre um Brasil verdadeiro de bandidos viciados em mulheres e ouro, de pobres desdentados que se unem a uma multidão para ver passar o caixão de um mito popular, aos flashes da imprensa.

Publicado originalmente no Jornal de Jundiaí em 04 de janeiro de 2023.

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

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