Pinóquio, de Guillermo del Toro e Mark Gustafson

O pai de Pinóquio é também o pai de Carlo. Ele, Gepeto, faz um boneco de madeira para substituir seu filho morto, para ser uma réplica do anterior. O novo menino foi esculpido em um de seus momentos de fúria e lamentação. Feito da árvore do pinho perto de sua casa, ele nasce como o monstro de Frankenstein, em noite de chuva e raios.

É um entre outros momentos no qual percebemos a atmosfera de Guillermo del Toro, que co-dirige Pinóquio com Mark Gustafson. Há sempre algo monstruoso nas tentativas de recriar seres à semelhança do homem, à sombra de um trauma. O cineasta mexicano, pai de faunos e espíritos, aproxima Carlo Collodi de Mary Shelley.

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O artista legítimo, conhecido em sua pequena vila italiana, não reconhece o produto de sua arte – e de sua embriaguez pelo ressentimento. Ao filho ilegítimo resta a estrada, alguma forma de recompensar e provar ao pai que pode ajudá-lo. O drama de Pinóquio continua intacto. Del Toro e Gustafson inserem algumas camadas a mais, como o momento político da Itália em que é ambientado, sob o regime fascista de Mussolini.

A textura dá-nos a impressão de que a madeira é estendida a todas as personagens, até aos espíritos, aos insetos, aos coelhos mortos que habitam o além à espera da nossa passagem para o outro lado. Diversas personagens ao redor enxergam no inocente Pinóquio o grotesco, o “diferente”, o menino cujas mentiras estouram na face, de pregos presos às costas, de braços e pernas finos, de corpo pequeno que queima com facilidade.

A criação de Gepeto, na mesma noite de transtornos e trovões, é assistida pelo recém-chegado Grilo Falante. A pequena criatura instala-se na árvore que fornece a matéria para as formas humanas de Pinóquio. Mal chega e é despejado: o espaço que escolheu para sua reclusão – o grilo é escritor, intelectual, tem a foto de Schopenhauer a lhe servir de inspiração – será carregado por Gepeto para sua maior criação.

O Grilo guia nossos olhos: é a natureza que fala e, como outras várias formas dadas aqui por del Toro, que recusa a expressão humana. Nem o Grilo nem as fadas terão faces e expressões bem marcadas. Nem Pinóquio. Somos obrigados a ver nesses pedaços de madeira, de natureza, o que nossa humanidade obriga-nos a ver. E temos pena do menino que se entrega ao mundo para impressionar o pai e o qual todos querem corromper.

No período fascista, diz del Toro, todos são feitos para serem autômatos. Um deles, sem vida, será o mais temido. Na Igreja em que morre Carlo ainda sobrevive a imagem de Cristo. Não tem um dos braços, mais tarde reposto. Pinóquio lembra que todos gostam de Cristo ao observar sua imagem. “Ele também é de madeira. Por que gostam dele, e de mim não?” Gepeto não tem resposta para tudo, mas sabe como encontrar um caminho: “Às vezes, as pessoas temem aquilo que desconhecem”.

É na igreja que Pinóquio é visto por sua comunidade pela primeira vez. Depois, ao caminhar com o pai pela rua, é observado pelo macaco do circo, que diz o que viu ao malvado líder da trupe. Pinóquio, apartado dos “normais”, será a presa perfeita para o circo e seus seres estranhos pagos para oferecer distorções aos olhos de alguns, ou, por ser de madeira e capaz de retornar dos mortos, perfeita aos fascistas atrás de novos soldados.

A versão de del Toro e Gustafson dá grande destaque a Gepeto, que termina na barriga da grande criatura marinha antes de Pinóquio. O menino de madeira, na estrada com o circo, apresenta-se para o próprio Mussolini, um boneco quadrado, baixo, uma criança mimada que pouco fala e, ao sinal do insulto, manda seu capanga dar fim ao estorvo.

O que há de mais triste e atual em Pinóquio é a consciência que o protagonista adquire ao perceber que talvez não seja o filho que seu criador deseja, tampouco a arte de madeira que louvam os religiosos. Por isso, neste mundo de imaturos e seres sem alma, Pinóquio obriga-se, como muitos, a ter uma função, a ganhar algo, dinheiro, sucesso, provação, a colocar o corpo a serviço do Estado. Caso contrário, crê, será sempre um fardo.

(Guillermo del Toro’s Pinocchio, Guillermo del Toro, Mark Gustafson, 2022)

Nota: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
O Beco do Pesadelo, de Guillermo del Toro

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