A democracia de Frank Capra, por Alex Viany

Famosos são os documentários que Frank Capra, como oficial do Exército norte-americano, fez durante a Segunda Grande Guerra. Trabalhando com uma excelente companhia de técnicos e artistas, o diretor registrou em filme não só alguns dos aspectos exteriores do conflito, mas também penetrou a fundo nas razões do mesmo (1). Esperava-se que, voltando a Hollywood, aplicasse aos filmes de ficção o realismo aprendido na guerra. Mas Capra preferiu continuar Capra, e, tornando a empunhar o cajado messiânico de outros tempos, reencetou o seu apostolado da bondade humana em A Felicidade Não Se Compra, Sua Esposa e o Mundo e, agora, Riding High [Nada Além de um Desejo].

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Frank Capra bem merece o título de “democrata romântico”. Desde Dama por um Dia (1933), seus filmes têm sempre procurado transmitir, em meio à comédia que aprendeu com Mack Sennett – e também dirigindo Harry Langdon, ou inventando situações cômicas para a velha turma dos “Peraltas” -, as mais ortodoxas lições de moral, sermões cheios de boa vontade e idealismo, e um conflito de extremos solucionado de maneira que poderia ser chamada de “post-dellyana”. Tomados em conjunto, seus filmes mais conhecidos – todos dedicados à exploração sentimental de facetas da civilização americana – constituem a epítome dos Estados Unidos de Frank Capra. Dama por um Dia, Aconteceu Naquela Noite (1934), O Galante Mr. Deeds (1936), Do Mundo Nada Se Leva (1938), A Mulher Faz o Homem (1939), Adorável Vagabundo (1941), A Felicidade Não Se Compra (1946) e Sua Esposa e o Mundo (1948), todos falam do amor desse imigrante siciliano pela terra que o acolheu, pela gente que deu oportunidade de expansão e aproveitamento a suas inegáveis qualidades de imaginação e invenção.

Se alguma hecatombe destruísse a civilização americana, poupando, entretanto, esses trabalhos de Capra, os sociólogos e historiadores de alguma raça futura veriam os Estados Unidos do Século XX mais ou menos como veríamos os gregos se só nos tivessem legado a sua mitologia. Pois Frank Capra é, acima de tudo, um fabricante de mitos, um fabulista que constrói conflitos apenas pelo prazer de solucioná-los diante de sua câmera de lentes côr-de- rosa. Em Dama por um Dia, baseado num conto de Damon Runyon, o fabuloso fabulista da Broadway, pôs em conflito a sua democracia popular – representada por uma mendiga (May Robson) – com a realeza europeia (Walter Connolly), e está visto que não só a democracia saiu ganhando como também conseguiu absorver a própria nobreza. (A fórmula foi usada antes, e continua prestando ótimos serviços a Hollywood.) Em Aconteceu Naquela Noite, o filme que deu novo rumo à comédia sofisticada norte-americana, o conflito teve lugar dentro da própria democracia romântica de Capra. Walter Connolly e Claudette Colbert representando a riqueza, Clark Gable é dezenas de outras personagens tomando o encargo de defender a querida “gentinha” do diretor. Talvez tenha sido essa a obra mais fiel, dentre as oito citadas, à realidade cotidiana da vida norte-americana. Não no conflito em si, mas sim na própria fórmula encontrada por Capra – e muito explorada depois por outros diretores e cenaristas (2) para justificar a “regeneração” de Miss Colbert: a perseguição movida por Gable à heroína através de todos os Estados Unidos. Na época em que o filme foi feito, os ônibus interestaduais tinham acabado de entrar na vida americana, e ainda eram uma novidade. O que Capra fez foi apresentar uns Estados Unidos em movimento, um pais de itinerantes e nômades, pontilhado de restaurantes de beira de estrada e cabanas para turistas, habitado por caixeiros viajantes, marinheiros a caminho da base ou da cidade natal, gente indo de um estado para outro, num fluxo constante, quase enervante – alimentado pela facilidade de transporte e pelo preço baixo da gasolina.

O Galante Mr. Deeds era a história de um homem que, herdando uma grande fortuna, resolve distribuir o que é seu entre os deserdados da vida. Contado em termos altamente hilariantes, em situações cômicas muito bem armadas, o filme terminava com a celebrada sequência do tribunal, quando o herói, julgado como um perigoso anormal, prova a anormalidade comum em todos os normais.

Conforme indica Harold J. Salemson num cuidadoso estudo do diretor, Frank Capra está sempre à procura de atalhos que levem à Utopia (3). É um rebuscador de panaceias, que não se preocupa com causas e dá soluções rosadas aos efeitos, sempre expostos superficialmente num mundo de emoções e tipos capreanos. Intrinsecamente, é verdade, seus problemas são reais: riqueza versus pobreza, honestidade versus corrupção. Mas Capra lida com figuras fortemente delineadas do Bem e do Mal. Seus heróis são repositórios de virtudes. Seus vilões são praticamente inexpugnáveis – pelo menos até a última cena.

À última hora, nas epopeias capreanas, tudo pode acontecer, e geralmente acontece. O herói está num beco sem saída: os vizinhos fazem uma vaquinha e vêm em seu socorro. O vilão vai executar a hipoteca, mas vê como o herói é querido, percebe que tem sido um patife, e rasga o papelucho sinistro. Muita razão tem Lewis Jacobs em comparar os filmes de Capra aos contos de O. Henry (4): ambos resolvem tudo com uma surpresa pouco antes do ponto final.

Veja-se o exemplo de A Mulher Faz o Homem, em que um senador simplório, interpretado por James Stewart, derrota uma camarilha de políticos venais. Ou veja-se o caso de Do Mundo Nada Se Leva, em que uma família de piroquetes acaba por conquistar, numa festa que lembra as comédias dos Irmãos Marx, a família do mesmo Stewart, cujo chefe é o tradicional banqueiro Edward Arnold.

Capra, como outros diretores de Hollywood, tem o seu grupo de artistas, dos quais raramente se afasta. Gary Cooper e James Stewart têm sido os seus heróis favoritos, e os dois últimos, Spencer Tracy e Bing Crosby, seguem a tradição: acima de tudo, são personalidades capreanas, mesmo quando longe de Capra. Figuras tipicamente americanas, Cooper, Stewart, Tracy e Crosby nem chegam, bem vistos, a ser atores. São personificações das qualidades americanas cantadas pelo cinema: homens simples, que facilmente se enganam, que facilmente vencem quando o seu fervor é despertado. São homens mais ou menos desprotegidos, que despertam os instintos paternais ou maternais das plateias, e com os quais os americanos podem identificar-se com a máxima naturalidade.

De uma ingenuidade a toda prova, a democracia de Capra nem sempre tem servido bons propósitos, e houve muitos críticos que encontraram uma mensagem quase fascística em Adorável Vagabundo, uma história que parecia advogar a necessidade de líderes todo-poderosos.

Os três filmes de Frank Capra no pós-guerra têm íntimas ligações com os anteriores. A Felicidade Não Se Compra é característico: uma mistura de pequenos toques de realismo numa enorme panela de poção de bruxa, provou que o realizador ainda era o melhor contador de histórias de fadas de Hollywood. Seu herói é o mesmo de Do Mundo Nada Se Leva e A Mulher Faz o Homem. É Jimmy Stewart, que também voltou da guerra com a mesma cara, os mesmos trejeitos. A história tem por fundo uma cidadezinha do interior, uma cidadezinha tipicamente capramericana. E, realmente, as ruas, as casas, e certos tipos, são bastante familiares para quem já atravessou alguns dos Estados Unidos de ônibus. Mais familiares ainda devem ser para os próprios americanos, típicos ou não, em cujo meio vivem: Lionel Barrymore, substituindo Edward Arnold como o banqueiro clássico dos folhetins, usurário e amoral; Thomas Mitchell, o tio beberrão, amargurado e distraído; Beulah Bondi, a mãe dedicada; Samuel S. Hinds, o pai bondoso; Ward Bond, o policial bondoso; Frank Faylen, o chofer de táxi bondoso; H. B. Warner, o farmacêutico beberrão, amargurado e, no fundo, também bondoso; Gloria Grahame, a namoradeira que, no fundo, é um anjo de criatura; Donna Reed, a pequena boazinha, que é, evidentemente, um anjo de criatura; e, naturalmente, Jimmy Stewart, um rapaz de grandes ambições, que quer correr o mundo e fazer fortuna.

Existe gente mais ou menos assim, naturalmente, nos Estados Unidos, no Brasil, ou em qualquer outro lugar. A figura que os liga, entretanto, e que adocica ainda mais a fantasia de Mr. Capra, é um camarada nada típico, esse mesmo Jimmy Stewart de grandes ambições.

Para mostrar o que seria a sua cidadezinha, aparentemente típica, sem a presença de um simples cidadão, Mr. Capra cometeu o erro inicial de escolher como herói o único cidadão indispensável da localidade. Pelo menos, é assim que apresenta o alongado Jimmy, e é assim que todos parecem considerá-lo em Bedford Falls – inclusive o careteiro Barrymore, um banqueiro que nada pode fazer sem afastar Jimmy do caminho. Sem dúvida, o herói, que deveria parecer insignificante para que a história tivesse nexo, só é insignificante para ele próprio. Mas justamente esse é o tema do diretor: ninguém no mundo é insignificante. Não vivemos dentro de nós próprios, mas afetando a cada instante a vida do próximo. Todavia, não se pode deixar de desejar que Capra tivesse escolhido um herói menos “típico”: ele o glorifica de tal maneira, trata de santificá-lo com tanta exuberância, que só mesmo esse titã em pele de João-ninguém seria capaz de imaginar um fim infeliz para a história.

Tal fim infeliz seria um suicídio, mas as forças celestiais, que resolvem meter-se na narrativa, despacham apressadamente um anjo para a terra.

O anjo capreano é o velhote Henry Travers, que não tem muita prática, e que nem mereceu ainda um par de asas. Sua missão é mostrar ao confuso herói o que seria a vida em Bedford Falls se ele, Jimmy Stewart, não tivesse vindo ao mundo.

Naturalmente, segundo a lógica de Mr. Capra, tudo termina muito bem, quando a cidade inteira faz uma vaquinha para cobrir um aparente desfalque nas contas do grande herói. É um final alegórico, absolutamente falso, que tem, no entanto, como muitas coisas do sentimental diretor, o poder de bulir com as emoções da plateia.

No último filme que dele vimos, Sua Esposa e o Mundo, o cineasta voltou ao mundo da política, já enfrentado antes em A Mulher Faz o Homem. Aí estão as suas qualidades ingênuas, inocentes, mas não o encanto simples que o tornou famoso. Spencer Tracy, no papel de Grant Matthews, um candidato idealista à presidência dos Estados Unidos, fala por Capra. O que diz é o que se poderia esperar da ingenuidade do diretor, mas está tão longe da realidade como o mundo de uma paz definitiva. Não é à toa que John McCarten, na revista The New Yorker, pôde descrever a história em poucas palavras: “Quando ele (o herói) recita princípios indignos do que parece ser um jardim de infância de política, sua amante e seu cabo eleitoral o denunciam como radical, e, quando tenta amanteigar algumas pessoas influentes no cenário nacional, sua esposa se queixa de que ele está perdendo a sinceridade. Hesitando entre o idealismo e a esperança de pendurar o chapéu na Casa Branca, Mr. Tracy fica em frangalhos, e só ao renunciar a suas aspirações presidenciais é que consegue voltar a ser o mesmo de antes”.

Ainda assim, por mais que seja um “jardim de infância de politica”, Sua Esposa e o Mundo é tão liberal como Capra sempre foi, e nos dá alguns rápidos vislumbres dos bastidores políticos norte-americanos. Mostra-nos, por exemplo, que nenhum candidato à presidência pode ser escolhido diretamente pelo povo. Em Angela Lansbury, dá-nos um Hearst de saias, capaz de fazer e desfazer, através de uma rede de jornais e emissoras, reputações, famas, e homens públicos. Mas, além do tom de simplismo que há mesmo nessas observações, é também ingênuo bastante para nos exibir uma cena supinamente ridícula (e impossível) como aquela em que os diretores dos jornais de Miss Lansbury se despedem, ao saber que ela pretende eleger Mr. Matthews. Isso jamais aconteceu na vidinha lauta e nociva de Mr. Hearst, e é bem provável que jamais aconteça no caso de outras cadeias de jornais, revistas e emissoras, por mais presidentes que elas façam e desfaçam. Como se isso não bastasse, Capra hesita, ao lado de seu candidato, entre dois extremos, e, talvez para mostrar imparcialidade, apresenta um líder trabalhista que chega a espumar de tanta cupidez. (Essa personagem parece ser uma caricatura exageradamente crua de John L. Lewis; mas talvez parecesse lógico a Capra apresentar assim um líder trabalhista aliado aos republicanos, tradicionais inimigos do sindicalismo nos Estados Unidos.)

Há relances de boa ironia em Sua Esposa e o Mundo, assim como os houve nos demais trabalhos do diretor. Essa ironia, porém, talvez seja mais devida aos autores da peça original, State of the Union – Howard Lindsay e Russell Crouse -, do que mesmo a Capra e seus cenaristas. Como já foi dito, o encanto simples que o distinguia é notável por sua ausência. Bem visto, Sua Esposa e o Mundo só tem duas coisas típicas de seu realizador: a irrealidade de fábula, fornecida pela ingenuidade e a inocência de Capra; e o desfecho espalhafatoso, carnavalesco. Esse desfecho, que, se bem me lembro, só não havia nos dois primeiros filmes citados, era inevitável. Mas o tom de fábula era o menos apropriado a uma história que faz esforços hercúleos para ser atual (seu lançamento coincidiu com a campanha política de 1948), que, tateante, quase às cegas, procura transmitir a mensagem de um liberal ao povo por ele amado. O resultado é que a mensagem é inócua quando deveria ser realista, confusa quando deveria ser clara, e hesitante quando deveria ser positiva.

Tanto A Felicidade Não Se Compra como Sua Esposa e o Mundo, os dois primeiros trabalhos de Frank Capra no pós-guerra, foram sucessos apenas relativos de bilheteria. Antes da guerra, seus filmes eram, obrigatoriamente, enormes sucessos. Teria o banho de realismo da guerra afetado o poder de encantamento desse fabricante de fábulas. Estaria ele, agora, num dilema entre a realidade observada e a sua própria “realidade” de Aconteceu Naquela Noite e O Galante Mr. Deeds?

A explicação parece estar em Riding High, que é a refilmagem de A Vitória Será Tua (1934), seu primeiro filme depois do extraordinário advento de Aconteceu Naquela Noite. Se é verdade que Bing Crosby substitui Warner Baxter, também é verdade que Capra resolveu utilizar diversos atores já vistos na primeira versão. Estará ele à procura do encanto perdido? Ou quererá apenas jogar no certo, depois de seus dois fracassos recentes?

Seja qual for a resposta, o interlúdio guerreiro de Frank Capra, durante o qual namorou de perto a realidade mais áspera, não foi mais que um incidente desagradável em sua carreira. Ele é o fabulista da boa vontade, o messias da boa vizinhança, o profeta da honestidade. E não se pode deixar de saudá-lo como tudo isso num momento em que o cinema americano, como um todo, parece procurar as formas mais violentas de sadismo e masoquismo. Frank Capra é um oásis de sentimentalismo num deserto povoado de gangsters e heróis façanhudos. Seu lugar na história do cinema americano está garantido: deu um novo rumo à comédia sofisticada, ainda que ele próprio não o seja. E é, indubitavelmente, um dos diretores mais imitados de todos os tempos.

NOTAS [do autor]: 1- Eis alguns dos documentários de guerra de Frank Capra: The Battle of Britain, The Battle of Russia, The Battle of China, Know Your Ally Britain, The Negro Soldier, San Pietro e a famosa série Why We Fight.

2- Aconteceu Naquela Noite é um dos filmes mais plagiados do cinema. Há poucos anos, houve uma nova versão, Eva em Apuros, com Ann Miller no papel antes desempenhado por Claudette Colbert. Arrisca-te, Mulher, com John Wayne e Jean Arthur e dirigido por William Seiter, foi uma história semelhante. Dois filmes ainda mais chegados ao original foram Romance e Fantasia, de Mervyn Le Roy, com a mesma Claudette Colbert e Wayne, e A Conquista da Felicidade, de H. C. Potter, com James Stewart e Joan Fontaine.

3- “Mr. Capra’s Short Cuts to Utopia”, in The Penguin Film Review, Londres, setembro de 1948.

4- Lewis Jacobs, The Rise of the American Films. Harcourt, Brace & Co., Nova York, 1939 (páginas 473 a 479).

Correio da Manhã (14 de maio de 1950)

Veja também:
Entrevista com John Cassavetes, por Joseph Gelmis

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