Great Freedom, de Sebastian Meise

Mesmo na solitária, o presidiário consegue ter acesso aos cigarros. Eles chegam a suas mãos pela pequena abertura da porta de metal, jogados por um amigo. Com os fósforos, volta momentaneamente a ter luz na escuridão e no isolamento. De corpo magro, pouca fala, ele está preso por ser homossexual. Seu crime, dizem as autoridades, é a depravação.

Anos ou décadas após a guerra, entre o nazismo e a chegada do homem à lua, pouca coisa parece ter mudado na sociedade em questão. Great Freedom explora esses passos lentos, essa impressão de imobilidade, nossa dificuldade de evolução. Depois de assistirem aos primeiros passos na lua, transmitidos pela televisão, Hans Hoffmann (Franz Rogowski) e o amigo Viktor (Georg Friedrich) não escondem o descontentamento.

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Eles esperavam algo épico. O que assistem são apenas alguns passos em local remoto, vazio, inabitável, a reprodução sem emoção – como costumam ser essas reproduções – do grande avanço científico. O filme oferece-nos o contraste entre o astronauta – o primeiro homem, seu esperado passo – e o marginalizado, o último homem da Terra. O diretor Sebastian Meise está interessado no último, em seu isolamento e seus vícios.

É um grande filme no qual o melhor está justamente no menor. Sem intrigas de prisão, dramas batidos, conflitos de gangues. Hoffmann esteve em um campo de concentração antes de ser levado pela primeira vez à cadeia. Seu crime é sempre o mesmo: praticar sexo com outros homens. Do nazismo à abertura, continua um perseguido.

Em três idas, três tempos. Somos levados primeiro ao último, depois ao primeiro, por fim ao segundo – e todos (dos anos 1940 aos 1960) são intercalados de maneira a condensar o drama passado para explicar o homem futuro. E em cada um desses tempos vemos um homem e, depois, ou antes, seu resultado, sua transformação, o que foi e o que se tornou.

O homem dos anos 1960 é o maduro, o “caçador” de rapazes em banheiros públicos, insaciável, cínico, ciente do mundo em que vive. Aquele que se crê adaptado. O primeiro é o rapaz que pouco sabe sobre o mundo, com medo, o animal acuado em sua jaula. O do meio é o apaixonado, talvez o rebelde, a gravar seu amante em película.

Em todos esses tempos ele tem a companhia de Viktor, que não chega a ser um “pai espiritual”. O outro tem seus problemas, seus demônios: lutou na guerra e foi preso ao voltar para casa, após matar um homem; é viciado em drogas; repele Hoffmann no primeiro encontro, ao descobrir que o companheiro de cela foi preso por “depravação”.

Viktor é mais complexo porque não sabe – ou prefere não saber – o que é, e seus desejos confrontam-no. Hoffmann termina por lhe dar um caminho, por ser quem lhe desperta desconhecida vontade. No interior da cela, em noites frias, eles terminam abraçados. Viktor estranha. Hoffmann compreende o que ocorre, e sabe como o outro – o macho que tatua desenhos na pele como se buscasse trocá-la – pode ser explosivo.

Dos campos de concentração, no primeiro tempo, Hoffman traz números tatuados na pele. Viktor sugere tatuar algo por cima. Hoffman diz para tatuar o que lhe vier à mente. Qualquer borrão importa mais. O contato pela pele – enquanto um “corta” o outro, faz sangrar – marca o início dessa relação profunda, de idas e voltas, de estranhamentos.

Meise envolve-nos nos avanços de Hoffman a outros homens à medida que leva Viktor da criação aparentemente decifrável, às claras, ao verdadeiro mistério de seu filme. E quando nos damos conta, Hoffman é um pouco como o melhor amigo: a liberdade enfim oferecida do lado de fora, em tempos modernos nos quais um labirinto de celas converte-se em zonas de prazer abundante, não lhe serve mais. Como Viktor, ele está preso à pouca luz do fósforo, na companhia do maço de cigarros, à espera de uma autoridade para conduzi-lo.

Já conhecíamos o tamanho de Franz Rogowski. Great Freedom oferece-lhe o desafio de ser o mesmo enquanto deve evocar variações. Não é nada fácil: do jovem do pós-guerra ao homem maduro e liberto dos anos 1960, sonhador com olhos voltados à lua, ele tem uma interpretação que explode em alguns poucos momentos, que limita sua tristeza ao seu corpo magro, de músculos marcados, como alguém que aprendeu a viver condenado.

(Große Freiheit, Sebastian Meise, 2021)

Nota: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
Crimes do Futuro, de David Cronenberg

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