Crimes do Futuro, de David Cronenberg

O leito onde deita o protagonista assemelha-se a um besouro com o casco para baixo, com suas pernas voltadas ao alto, presas ao teto. O homem repousa, sonha, enquanto recebe uma carga de hormônios através de tubos ligados ao seu corpo. Nesse mesmo corpo serão desenvolvidos novos órgãos, tumores controlados.

Com David Cronenberg, estamos outra vez no terreno em que se misturam arte, ciência e prazer físico, à medida que o inesperado com alguma frequência nos sabota. Crimes do Futuro conta-nos, com calma, o destino caótico de uma civilização fechada em cômodos escuros e masmorras, em seus sonhos profundos, suas tentativas de domar seus tumores. Sobretudo, em suas investidas na arte como o limite para seguir vivendo.

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Em Gêmeos – Mórbida Semelhança, Cronenberg parte da ciência (a prática de dois médicos ginecologistas) para chegar à arte (seus instrumentos cirúrgicos). Crimes do Futuro propõe o oposto: parte da arte (as performances artísticas do protagonista e sua assistente) para chegar à ciência (o controle do próprio corpo). Nos dois, a adoração à matéria acarreta problemas.

E nem sempre é simples identificar em que ponto a arte dá espaço à ciência e vice-versa. Prefiro pensar em uma dimensão em que ambas trocam sinais, tocam-se, em que as personagens não podem chegar a uma sem que a outra deflagre suas forças. O protagonista é o artista Saul Tenser (Viggo Mortensen), cujo abdômen é aberto aos olhos de seu público. Quem controla a máquina de bisturis – parecida com um grande inseto, a exemplo do citado leito-besouro – é a outra artista, Caprice (Léa Seydoux).

A dupla lança-se no body horror, na performance das tripas, das vísceras, da deflagração de nosso interior, da extirpação de tumores aos olhos de um público excitado. “A arte triunfa de novo”, diz a personagem de Mortensen à companheira após a fala de uma garota (Kristen Stewart), a quem a cirurgia seria o novo sexo. Nesse futuro incerto, a arte é o que sempre foi: um ritual estimulante, a revelação de nossos desejos ocultos.

Vive-se sempre o insolúvel: além de estimular nossas emoções, qual a utilidade prática da arte? Além de alterar nossa realidade tátil e salvar vidas, que estímulo pode oferecer a ciência? Cronenberg leva ambas ao mesmo jogo. A certa altura, vemos um artista com olhos e boca costurados, corpo coberto por orelhas implantadas. Alguém que assiste questiona qual a necessidade de tantas orelhas se com elas o homem não pode ouvir nada. Só é possível compreender a escolha como provocação estética.

Além das dimensões científica e artística, o diretor insere a política. E não demora a dar as caras. Tenser é um informante da polícia, que investiga uma organização que faz experiências com o corpo humano e o tornou capaz de digerir plástico. Um dos homens à frente dessa organização inclusive é pai de uma criança – a primeira natural “não natural” – com o organismo dotado com esse tipo de digestão.

A criança é apresentada na abertura, único momento em que vemos luz do sol em abundância. A criança está à beira-mar. Ao fundo dela, um grande navio tombado – parte imerso, parte exposto – representa o fracasso de nossa civilização moderna: o meio de transporte – imagem de progresso, grande máquina, meio de desbravamento de continentes – converte-se no gigante preso ao atoleiro e sem função senão apodrecer.

A criança é morta pela própria mãe. Mais tarde, seu corpo é oferecido a um espetáculo de Tenser – um espetáculo nunca antes realizado. Pela primeira vez, observa Caprice, a performance será feita sem o consentimento de uma das partes; passa-se para um terreno mais perigoso, no qual uma possível ética da arte é posta em xeque.

Por trás do mundo de Tenser há outros interesses. Representantes de uma empresa de máquinas que fazem autópsias ora ou outra aparecem, flertam com Caprice, convertem-se em assassinas contra os mutantes capazes de digerir plástico. A indústria lucra com nossas imperfeições, nossos tumores e manias, com nossos desejos de olhar para dentro – ao reverso da pele, aos nossos órgãos – quando o espaço lá fora não mais satisfaz.

Cronenberg segue inquieto. Mesmo quando tropeça nos faz pensar: é um dos artistas mais interessantes do cinema atual, alguém que desde o início de sua carreira persegue os mesmos temas, ou apenas um: nossa obsessão pelo orgânico e o descontrole do que criamos, nossas máquinas. O grande navio tombado é como um câncer parcialmente exposto. Outra parte, do mesmo tamanho, continua submersa, fora do alcance dos nossos olhos.

(Crimes of the Future, David Cronenberg, 2022)

Nota: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
Cosmópolis, de David Cronenberg

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