A ilha de Bergman

No início dos anos 1960, Ingmar Bergman foi a Fårö, uma ilha no Mar Báltico, costa sudeste da Suécia, filmar Através de um Espelho. O cineasta – já consagrado por sucessos como Sorrisos de uma Noite de Amor, O Sétimo Selo e Morangos Silvestres – apaixonou-se pelo local. Faria na ilha outros diversos filmes e se mudaria para lá.

O espaço geográfico da ilha casou-se à perfeição ao cinema bergmaniano, aos choques das falas com o silêncio de duas mulheres em Persona, ao terror interior de um homem isolado em A Hora do Lobo, à confissão de um marido à sua mulher, quando diz que está apaixonado por outra, em Cenas de um Casamento. O cinema de Bergman reflete-se nessa ilha, ambiente no qual viveu até seus últimos dias, em 2007.

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O local é frio, bucólico, sua paisagem é seca. O inverno é rigoroso e o mar às vezes é agitado. Muitos dos jovens que viviam ali, quando abordados por Bergman, diziam ter vontade de ir embora. As perguntas e respostas estão no documentário Fårö dokument, feito em 1969 e lançado em 1970 na televisão sueca. Com estilo incomum à sua filmografia, Bergman revela uma pequena população reclusa que, à época, não chegava a mil pessoas.

Dez anos depois de Fårö dokument, Bergman lançou sua continuação, Fårö dokument 1979, na qual reencontra os mesmos jovens que abordou, no ônibus escolar, uma década antes. O que ocorreu com suas vidas? Conseguiram sair da ilha? Alguns sim, outros não. O realizador sueco também volta a outras pessoas que entrevistou, com a intenção de registrar as transformações locais e, sobretudo, a vida em um ambiente que resistiu à modernidade dos continentes, espaço de tranquilidade, perfeito para filmes amargos.

Mas nem tudo é quietude: em Fårö dokument 1979, vemos a invasão dos turistas no verão, como em outros tantos lugares do mundo. A bordo de carros abarrotados de utensílios, barracas e roupas de praia coloridas, turistas são sempre turistas – até na remota Fårö eles repetem-se, como se tivessem saído de Tubarão ou Férias Frustradas.

A Fårö de 1969 é mais triste, aparentemente menor, e as imagens captadas pelo diretor de fotografia Sven Nykvist deixam-nos ver a alma de seu diretor. O retorno à vida simples, aos seus moradores e espaços, dez anos depois, deixa-nos a impressão de um lugar como outro qualquer. E talvez fosse esta a intenção de Bergman: aquela, no fundo, não era sua ilha, o espaço de seus filmes, mas a ilha dos outros.

Em 2004, a diretora Marie Nyreröd foi a Fårö conversar com Bergman e fez um documentário sobre o artista e sua relação com o espaço. O resultado é o ótimo A Ilha de Bergman, lançado em DVD no Brasil. Vemos Bergman ainda feliz apesar de solitário, alguém que talvez tenha voltado a crer em Deus depois da morte de sua última esposa, Ingrid, ao lado de quem ele seria enterrado mais tarde. Em Fårö, claro.

Outro filme com o mesmo nome, dessa vez uma ficção, foi lançado recentemente. A Ilha de Bergman, da francesa Mia Hansen-Løve, é um drama sobre um casal de cineastas em viagem a Fårö, com passagens pela casa de Bergman, pelo cinema local e pelo instituto que, todos os anos, organiza mostras e passeios para celebrar a arte do mestre sueco.

A protagonista de Hansen-Løve é Chris (Vicky Krieps), que passa alguns dias na ilha ao lado do marido Tony (Tim Roth) e atrás de uma inspiração para uma nova história, novo filme. E não demora para sermos lançados nele. Há então outra camada, a viagem de uma moça (Mia Wasikowska) a Fårö e seu reencontro com o homem que ainda ama (Anders Danielsen Lie). Uma história de falsas esperanças e rompimento. Sua idealizadora, através da arte e a exemplo de tantos artistas, pode estar falando de si mesma. Como Bergman.

Publicado originalmente no Jornal de Jundiaí em 14 de dezembro de 2022.

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

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