Estado de Sítio, de Costa-Gavras

As imagens incriminam e absolvem o executivo sequestrado, o norte-americano Philip Michael Santore. O que sabemos sobre ele, nas memórias projetadas na tela, sempre deixam alguma dúvida sobre seu real posicionamento. Um homem técnico, um homem político – não sabemos ao certo como qualificá-lo ao longo de Estado de Sítio.

Ele é sequestrado pelo Movimento de Liberação Nacional Tupamaros, no Uruguai militarizado dos anos 1960 e 1970 – aos ecos para toda a América Latina, inclusive para o Chile, onde o filme foi realizado (e que tomaria um golpe em 1973). O cárcere acomoda também um diplomata brasileiro. O sequestro de um terceiro fracassa.

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O diretor Costa-Gavras utiliza ritmo semelhante ao de seus filmes anteriores, Z e A Confissão, e consegue um resultado não menos impactante. A montagem continua a cargo de Françoise Bonnot e avança a uma colagem desenfreada, com resquícios de vida, humanidade furtiva. Não nos apegamos a nada – a nenhum homem, a nenhum lado – senão à investigação, à dialética que, ao fim, diz-nos que bons ou maus inexistem e que o sistema – como em Z e A Confissão – é resumido a fardas, não a rostos.

O cinema político do genial Costa-Gavras interpela-nos pela aproximação a quem é o centro do problema e da ação – Philip Michael Santore – à medida que nos afasta, a todo custo, dos que lutam pela causa justa – os revolucionários e sequestradores. Desde o início entendemos qual lado Gavras prefere (o que é óbvio por se tratar dele) sem que a escolha leve-o ao panfleto fácil, ao rascunho acabado, ao “nós contra eles”.

O cinema político em questão é o da dúvida: na cidade sitiada do início, saímos da lataria de um carro para chegar às avenidas tomadas por cavalos e soldados e depois retornamos, em movimento oposto, à mesma rua e ao mesmo veículo. Está ali, no caixão metálico, o corpo de Philip Michael Santore. Sabemos de sua morte desde os primeiros instantes.

Seu cadáver é autopsiado. Um tiro foi dado para sua morte. Outro, disparado dias antes, é um mistério. Os homens do governo e da grande empresa aos quais ele servia assistem à análise. Em seguida, seu velório e a votação de luto nacional no Congresso uruguaio. Pelo menos um terço da casa – a oposição – preferiu faltar. De país em país, a prática repete-se.

O padre elogia Santore. A mulher e os filhos ocupam as primeiras fileiras do espaço sagrado. A Igreja rende-se aos militares e às corporações; ao lidar com a morte, tem lá sua desculpa. O clima é de medo. A Igreja é o teatro perfeito aos militares enlutados. O corte leva-nos a Santore, à sua chegada no Uruguai e, depois, ao cerco de seu sequestro.

Dos Tupamaros ficamos com os rostos. Jovens anônimos de roupas simples, sem grandes expressões. No interrogatório a Santore, eles vestem máscaras. Ao nos dar um pouco do sequestrado – ainda que à base da dúvida – e quase nada dos sequestradores, Gavras deixa claro que não há qualquer possibilidade de heroísmo ou redenção.

Na contramão das certezas estão os avanços e presenças, sempre suspeitos, do executivo de uma multinacional que lucra com a segurança dos países latinos. Em outras palavras, uma empresa americana que ensina militares latinos a combater forças revolucionárias – os subversivos. A despeito das paixões, os homens que dialogam no cárcere expõem suas diferenças e, de novo, apenas de um lado – o de Santore – colhemos humanidade.

Talvez porque seja obrigado a interpretar. Talvez porque seja um bom homem mesmo servindo ao imperialismo que os revolucionários combatem. Talvez suas certezas estejam enraizadas o suficiente para não se dobrar aos outros – mesmo sabendo da morte certa. Talvez porque seja corajoso o suficiente para resistir, e talvez se tornar um mártir.

Em todas as voltas e pontas do interrogatório seus protagonistas retornam à política. É inseparável de qualquer discussão no país sitiado em que corre a história, no inverno que cai na América Latina de ônibus revistados, de metralhadoras entre pães, da cavalaria que percorre terrenos e avenidas fechadas por cancelas. Por ali, todos são suspeitos.

Gavras utiliza um jornalista para fazer perguntas inconvenientes aos militares, a nós necessárias. Por que os revolucionários escolheram sequestrar Santore? A montagem, entre passado e presente, entre o que parece ser um bom pai de família e um “técnico” a serviço do treinamento militar, permite que a dúvida alimente esse filme magistral.

(État de siège, Costa-Gavras, 1972)

Nota: ★★★★★

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

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Os 20 melhores filmes de 1972

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