O Desafio, por Francisco Luiz de Almeida Salles

O Desafio coloca o cinema brasileiro no plano de autoanálise dos problemas do país refletidos na consciência de um jovem escritor. A sua importância é múltipla, mas a que se sobreleva, entre todas, é o fato de escolher um personagem para quem a situação do país se confunde com a sua própria situação pessoal, a vida do país com a sua própria vida. Seus problemas não podem ser resolvidos, os do trabalho e os do amor, já que as condições em que se vive são inautênticas.

Inútil refugiar-se no solipsismo da existência individual, se não há participação na existência coletiva. Marcelo imagina a possibilidade de uma vida “segura, coletiva, linda”. Linda será, pois, a vida de pazes feitas com a circunstância social e nacional.

O personagem é um anti-cínico exacerbado. A política deixa de ser um problema do Estado, para ser a própria respiração do homem, a sua condição de existência.

ACOMPANHE NOSSOS CANAIS: Facebook e Telegram

Nesse sentido, O Desafio é uma poderosa denúncia contra a indiferença brasileira em relação à participação da vida do país, indiferença com base quer no egoísmo, quer na fruição dos prazeres materiais, quer na exploração, quer no tédio, quer na náusea. O filme é um apelo à responsabilidade, pois não poderá haver responsabilidade individual, sem a participação na responsabilidade coletiva.

Não é possível amar se a ideia e o amor não são a mesma coisa. De súbito os amantes poderão não estar do “mesmo lado”, diz Marcelo, numa de suas confissões arrancadas do difícil e opressivo diálogo com Ada. A meditação política como dado da consciência individual é posta pela primeira vez, no nosso cinema, de maneira direta e extrema. Como apologética de formação da consciência política do país, não tínhamos tido ainda, no nosso cinema, obra tão importante.

Marcelo não toma posição político-ideológica, o que dá à clave de sua revolta uma extensão ampla. O clima do filme são os primeiros meses após a revolução de março de 1964. Nesse sentido, Marcelo se define contra a situação que se criou no país, e poderia ser caracterizado como um saudosista, ao dizer que passamos da fase da euforia para a fase da depressão.

É um antiburguês, portanto, um homem de esquerda. E o rompimento com Ada se efetiva, quando denuncia a preocupação da mulher pelos problemas pessoais de sua classe. “Você está sentada numa poltrona”, declara à amante. Mas a significação do filme está menos numa tomada de posição em relação a um tipo de política do que na afirmação da impossibilidade de separar a existência individual da vida geral da comunidade.

Evidentemente que O Desafio propõe a fórmula da politique d’abord, que, originalmente, é uma legenda de direita maurassiana, como seria o économique d’abord de todos os movimentos de esquerda, mas essa primeira fórmula desligou-se do esquema monárquico e tradicionalista de Charles Maurras e tornou-se uma verdade de todos os dias.

Não é possível pensar, amar e agir, dentro do esquema da autenticidade, se não estivermos colados na circunstância coletiva. É preciso correr os riscos da ação, não os riscos da omissão. A ação, mesmo malograda, nos dará boa consciência, porque diligenciamos, enfrentando às vezes dificuldades invencíveis. Perguntaram a um espanhol, na última guerra, se a Espanha poderia resistir caso os nazistas transpusessem os Pirineus. O espanhol respondeu: “no poderemos resistir, pero resistiremos”.

O Desafio é o nosso desafio contra tudo que nos sufoca. Só se pode amar, plenamente, no jardim. Isto é, quando ouvimos o canto dos pássaros e percebemos que as flores brotam dos ramos. A ruga na testa, dificilmente desfeita, nos impede de viver a experiência pessoal, já que o compromisso com o país e o povo de que somos parte nos impede de fruir as necessárias experiências individuais.

Como seria possível escrever um livro como se estivéssemos no vácuo? O livro que Marcelo deseja escrever supõe que a circunstância seja autêntica, sem a qual melhor seria conspirar, atirando pedras ou jogando bombas.

Para Marcelo construir o seu mundo, precisa viver no mundo. Ou o mundo o estimula, o inspira, ou não poderá viver no mundo. Viver na hipocrisia e no cinismo pode ser ato de pseudo-homens, de esboços humanos, mas se a circunstância nos crucificou na autenticidade, não podemos, como o avestruz, esconder a cabeça sob as penas para escamotear a tempestade.

O Desafio é o filme mais político do cinema brasileiro. Ele compromete a nossa fuga, denuncia a nossa náusea e impede que, nos desvãos da vida individual, alimentemos o tédio como defesa e demissão.

É o filme da antidemissão. Não podemos demitir-nos do país, porque seria um suicídio, estaríamos nos demitindo de nós mesmos. O Desafio coloca o problema de um intelectual jovem que ama a esposa de um industrial. A Revolução colocou-o em face da mulher como em face de um muro. Ada só se preocupa com o amor, porque se sente frustrada na relação com o marido. Mas a assunção de um fato novo, um acontecimento político, trouxe a perplexidade ao jovem escritor, a amante passou a ser burguesa, a mulher da fruição física salientou sua classe, e o amor e a ideologia não puderam se harmonizar.

Importante que no Brasil, onde a consciência política é um lusco-fusco ocasional de resignação, aturdimento e espera, e onde a confiança nos políticos e nos partidos é um dado de submissão do povo, este filme venha nos dizer que não é possível amar na impostura e não é possível deixar de vincular o ato de escrever e o ato de amar à contingência da vida social e política.

Esta a tese central que dignifica esta obra de Paulo César Saraceni e insere nosso cinema no campo do testemunho político e da vida política presente.

Marcelo situa-se numa posição extremada de recusa, para dar ênfase à sua atitude de sujeição do ideal particular às condições gerais da convivência. Evidente que poderá fazer do livro a escrever um instrumento de luta contra o que o oprime e fazer do amor autêntico uma maneira de superar o que há de equívoco na circunstância global.

Mas nós o surpreendemos no ápice de uma crise, e é essa crise, e nada mais do que ela, que o filme focaliza, dando-nos, com isso, outro mérito do filme, que é o de aplicar-se a um estado de espírito do personagem e não a um drama evoluído e acabado. O cinema moderno, como o romance moderno, não se atém mais à trama fechada, a enredos concluídos, à fabulação episódica. Poderá optar por segmentos de existência e extrair da duração e do prisma do instante a sua significação e a sua verdade, mesmo provisórias.

Não sabemos o que Marcelo pensará depois daquele momento. Mas o essencial é que aquele momento impôs-lhe uma reação, que lhe foi impossível sopitar. Daí a dificuldade de comunicação do filme com o espectador médio, habituado com o cinema conclusivo, assentado mais numa história do que numa situação.

Mas nessa abordagem de um momento da duração da experiência pessoal é que reside a modernidade de O Desafio e o situa ao lado de outros filmes contemporâneos, que procuram quebrar a carapaça rígida do cinema compromissado com o simples enredo.

Para exprimir-se nesse campo aberto e ainda inconsequente da análise de dado instante de uma experiência, Saraceni elegeu um tipo de narração larga, para dar ao ambiente a mesma importância que aos personagens, e ao silêncio o mesmo realce que aos diálogos.

Aos que acusam o filme de super-falado, poderíamos retrucar acusando-o, também, de super-silencioso. Se o filme tem, praticamente, dois personagens e seu tema é o do desentendimento entre um homem e uma mulher, em função de uma circunstância política, o diálogo é a expressão necessária desse desentendimento. Em consequência, ele se impõe como necessário também cinematograficamente. E a sua inserção é feita em termos de cinema, porque as zonas de silêncio que os espaçam no tempo, e nas quais a ambiência se carrega da mesma tensão dramática dos personagens, só podiam ser resolvidas, plenamente, pelo cinema.

A conversa é descontínua e o silêncio, além de imantar impressionisticamente a ambiência, do conteúdo das falas, funciona ao mesmo tempo como elemento de contraste e de ênfase dos diálogos.

O filme se desenvolve apoiado numa antítese dialética entre o homem e a mulher, e entre o intelectual autêntico e o intelectual cínico. E os números musicais sublinham a problemática da circunstância política, como um coro, que resumisse, sob a forma de refrão, o essencial do drama de Marcelo.

Se certas soluções formais são encontradas em Antonioni, Godard, Resnais, no Rossellini de Viagem à Itália, soluções essas incorporadas à cultura cinematográfica moderna, o fato de Paulo César Saraceni as ter assimilado testemunha a seu favor, já que as emprega funcionalmente ao tema que se propôs e nunca de maneira artificial ou adjetiva.

O Estado de S. Paulo (Suplemento Literário; “O Desafio de Saraceni”, 11 de junho de 1966)

Veja também:
A subjetividade no documentário, por Patricio Guzmán

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s