A subjetividade no documentário, por Patricio Guzmán

Há quase cem anos temos escutado uma discussão bizantina sobre a “objetividade” nos filmes documentários. É um tema cíclico que aparece e desaparece de tempos em tempos. Alguém, um jornalista, um político ou uma instituição, torna a instalá-lo. Provavelmente, para cada geração existe uma história distinta sobre a origem da objetividade. Em cada continente ocorreu de maneira distinta. Na Europa, as televisões estatais proclamaram a objetividade nos anos 1940 e 1950. Segundo dizem, esses monopólios queriam oferecer programas neutros, equânimes, já que dos impostos do mundo. Com certeza, isso jamais se cumpriu, porque, além de hipócrita, era um propósito impossível. É preciso esclarecer, porém, que o jornalismo de muitos lugares do mundo tem um lado competente e que a imparcialidade de alguns meios é um desejo que às vezes é realizado.

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O universo do documentário, porém, é outra coisa. Desde os primórdios, o gênero nasceu e se apoiou nos grandes autores subjetivos (Flaherty, Vertov, Ruttmann, Haanstra, Ivens, Rouch, Marker, Depardon), e também no princípio foi manipulado pela política e a indústria. Quase ninguém se livrou dessa pressão. No entanto, mais ou menos nos anos 1990, após atravessar muitas fases contraditórias, ninguém mais pôde continuar negando a subjetividade. Atualmente, a maioria das pessoas que trabalham com audiovisual sabe que os documentários refletem a opinião de um autor.

O que acontecerá, entretanto, amanhã? É um enigma, porque pode ocorrer qualquer coisa; o ambiente pode regredir e retroceder aos anos 1950. A criação artística está baseada na tolerância de um sistema político. No momento, existe um número de pessoas que apoia a liberdade e a subjetividade dos autores.

Copio, mais ou menos ao pé da letra, alguns conceitos de Alan Rosenthal e Bill Nichols que estabelecem a subjetividade. Eles dizem mais ou menos o seguinte: os documentários não são fotocópias da realidade, mas antes representações dela. O cineasta é uma testemunha que participa; um observador ativo que toma posição – um fabricante de significados – que nos oferece uma obra pessoal, um discurso cinematográfico que vai muito além do olhar de um observador neutro. Jean-Louis Comolli, por sua vez, confirma: “nenhuma situação da realidade pode ser filmada sem alterar uma parte de seu estado original”.

As opiniões da diretora Claire Simon são inquestionáveis: “Um documentarista interpreta a realidade. Dá-nos uma visão livre e subjetiva dela. Nem sempre o documentário é um olhar pedagógico, educativo ou científico. O documentário é acossado pela noção de documento, de prova. Creio que se trata de um mal-entendido. Sempre vejo meus filmes como metáforas, sejam ou não documentários”.

O diretor Nicolas Philibert vai mais longe, pois defende a expressão autoral do documentário:

Ficção ou não, um filme é sempre uma reinterpretação, uma reescritura do mundo. Infelizmente nós, os documentaristas, somos perseguidos pela noção de que filmamos a realidade bruta, e muita gente desqualifica os documentários como filmes, como obras, como metáforas, capazes de narrar o mundo, assim como o faz a ficção.

A subjetividade tem um valor expressivo atraente; o olhar dá forma ao que olha. Filmada com entusiasmo, com veemência, a imagem de uma pessoa ou de um grupo tem já uma forma distinta, um conteúdo mais convincente, Jamais o documentário foi um espelho imparcial da vida, mas um olhar singular. Todo mundo sabe que nós, documentaristas, damos nosso parecer. Quando eu era jovem, porém, não se podia falar abertamente de subjetividade; era um tabu.

Em 1975, por exemplo, quando mostrei A Batalha do Chile pela primeira vez na televisão sueca – uma exibição privada para alguns executivos importantes-, o chefe disse-me ao término: “É um filme interessante, mas desequilibrado…”. Produziu-se um silêncio na sala e eu fiquei deprimido. Não soube me defender e fiquei calado. De todo modo, eles compraram o filme. Mas naquele momento pensei que a venda tivesse fracassado.

Com a perspectiva dos anos, agora francamente penso que aquela televisão jamais teria sido capaz de fazer um documentário como A Batalha do Chile. Eles sabiam provavelmente disso. Queriam um filme simétrico, com uns 30% de opiniões da esquerda, uns 30% de opiniões do centro e uns 30% de opiniões da direita, assim como fazem alguns espaços eleitorais. Não há sentido algum em pedir a um pintor que faça um quadro trabalhando com a mesma porcentagem de vermelho, verde ou amarelo; é irracional.

A Batalha do Chile, por sua vez, entra simplesmente no torvelinho de uma revolução. É uma obra protagonizada por uma maré humana contraditória; mostra um período no qual se produziu uma aceleração da história, em que ocorreram milhares de fatos que culminaram num golpe de Estado. Transmitia – e continua transmitindo – uma carga de energia que supera qualquer programa informativo clássico, e minha posição sempre foi a de estar ao lado de Salvador Allende.

Segundo minha perspectiva, o mais importante de um documentário desse tipo não é sua “objetividade”, mas sua autenticidade, sua credibilidade, sua disposição para comunicar ao público um fenômeno de forma ampla, deixando ao espectador um espaço para que ele mesmo tire suas próprias conclusões. O documentário é um espaço de reflexão. Esse requisito é muito mais importante do que a objetividade ou a subjetividade. E esse espaço de reflexão nasce, germina, cresce, quando o criador desfruta de plena liberdade. No caso de A Batalha do Chile, eu me propus a oferecer a palavra aos simpatizantes de Allende e também a seus adversários. Os primeiros em geral mostravam alegria, humor e entusiasmo. Os outros manifestavam quase sempre raiva, desprezo e intolerância. De fato, não tinha que explicar nada, apenas observá-los.

Na prática, existem muito poucas obras – verdadeiramente insubstituíveis – feitas pelos canais de televisão. A grande maioria das obras essenciais da história do documentário nasceram graças à autonomia de um grupo que trabalha por sua conta ou ao impulso de um diretor independente.

O que pedia a televisão sueca era o mesmo que pediam – e ainda pedem – muitos canais: uma versão neutra de um golpe de Estado, um ato terrorista organizado pela CIA contra uma democracia. Se um canal ou uma instituição quer vários pontos de vista distintos sobre um tema controvertido, a única fórmula útil é pedir obras diferentes a vários autores. Pode-se dizer que o único fragmento de documentário “objetivo” que existe no mundo é a imagem que oferecem as câmeras de vigilância dos bancos, dos ministérios, dos hotéis e das ruas.

Patricio Guzmán em Filmar o que Não se Vê (Edições Sesc; pgs. 22-25).

Imagem do cabeçalho: A Batalha do Chile

Veja também:
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