Ainda criança, ao chegar ao convento no qual só entrou graças ao dote pago pelo pai, Benedetta tem seu primeiro aprendizado ao deixar para trás o vestido azul e ser fechada em um figurino que faz seu corpo coçar: ela aprende, através da freira que lhe introduz no ambiente, que seu corpo é seu maior inimigo.
A mesma freira mostra a ela o dedo cortado, substituído por um dedo de madeira, e diz que, se pudesse, alteraria todas as partes de seu corpo àquela matéria sem vida – na qual “seria esculpido o nome de Deus”. Ao que Benedetta, tão inteligente, percebe ser uma representação da morte. “Como em uma lápide”, observa a ainda menina, futura freira.
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Benedetta, de Paul Verhoeven, nasceu polêmico. Diz-nos o que já sabemos em abordagem original, imagens inesquecíveis, pelo eterno conflito entre a dor e o desejo – no ponto em que tudo se configura em uma única forma, a de Benedetta, talvez a mais bela freira que o cinema criou, a rivalizar com a Anna Karina de A Religiosa.
Para começar, Verhoeven faz de sua protagonista um conflito vivo, uma figura dúbia, alguém que pode mudar rapidamente de estado. Basta pensar na cena em que ela toca as partes íntimas na frente de sua amante e logo em seguida joga-se ao chão para se curvar, pôr-se de joelhos, ao mesmo Jesus com quem casou-se para ser freira e viver no claustro.

Benedetta interessa-nos porque é feita dessa matéria insconstante, a exemplo de outras grandes personagens femininas do cineasta holandês. Loira, atraente, visão fixa nas certezas que as aparições de Jesus concedem-lhe, é também a mulher de corpo aberto, seio posto, a desejar o toque profundo da amante em sua genitália. E se o dedo não é capaz de sustentar tanto desejo, parte-se ao objeto, à imagem de Maria convertida em vibrador de madeira, esculpido à medida justamente pela amante.
Não se trata, por sua vez, de provocação barata. Verhoeven, com roteiro dividido com David Birke, a partir do livro de Judith C. Brown, representa nesse gesto ousado mas íntimo ao extremo, nessa busca pelo prazer conjugada à imagem religiosa, o que define sua personagem central: a espiritualidade – representada pela imagem de Maria – pode, ao contrário do que prega a Igreja, dar acesso ao prazer (o gozo), por sua vez à felicidade.
Para Benedetta (Virginie Efira), sonhos ou delírios com Jesus são libertários, não demolem sua ascese. Sua vida muda com a entrada de Bartolomea (Daphne Patakia) no convento. Elas são atraídas uma pela outra. Enquanto Benedetta não tem explicações, Bartolomea não carrega culpa ao avançar à colega; curiosamente, a recém-chegada é menos misteriosa nesse reino de conjugação de carne e espírito, inclusive mais real.
No confessionário, o padre lembra Benedetta que o acesso a Cristo precisa se dar pela dor. É a máxima da Igreja: a vida no reino da carne necessita de todas as provações – o martírio – para que se chegue ao paraíso. À noite, Benedetta vê-se outra vez face a face com Cristo, agora na cruz, corpo perfurado, em sangue. A freira tira o pano que cobre o sexo de Cristo e não encontra sexo algum; toca sua mão e sente toda sua dor.
A partir desse ponto, a protagonista passa a ser – ou acredita ser – o corpo de Cristo na Terra: revela às outras freiras, aos padres, aos núncios os cortes do Salvador, a estigmata. Será para alguns uma falsa profeta, para outros o corpo pelo qual o Senhor encontra voz. Na sanha pela dor, a Igreja enxerga na peste negra – para fora da vila, mas próxima, inevitável – os sinais, de novo, de um Deus punitivo, que banha o céu em sangue para o apocalipse.
E é Benedetta, impregnada por Cristo, que surge com a solução. De braços abertos, no cenário abertamente falso proposto por Verhoeven, ela afirma aos fiéis ajoelhados que a cidade está protegida e, aos guardas, lembra que é preciso fechar os portões. Seu destino não foge ao de muitas outras mulheres que diziam ver imagens e ter contato com o Divino: a ela, cada vez mais, anunciam-se a tortura e a fogueira na Toscana do século 17.
Quem é Benedetta? Fiz essa pergunta o filme todo. Verhoeven prefere os mistérios que resistem até aos atos, até às pistas – como os flagrantes cacos de vidro mesclados ao sangue da protagonista. É na dubiedade de Benedetta, e não no jogo de poder levado à frente por figuras como a abadessa de Charlotte Rampling, que encontramos a força desse filme no qual a religião continua a transformar pessoas em lápides e o sexo a confundir e libertar.
(Idem, Paul Verhoeven, 2021)
Nota: ★★★★☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

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