The Manchurian Candidate imagina uma tentativa de domínio dos Estados Unidos pelos comunistas, feita insidiosamente através da apresentação de um candidato à presidência da República a ser eleito democraticamente. Inútil discutir as probabilidades da manobra, talvez menores que as da conquista da Lua pelos astronautas russos; mas, como esta conquista, aquela manobra não deixa de ser dialeticamente admissível. Sem mais campo para a ação de baixo para cima, os técnicos em infiltração comunista passaram a aperfeiçoar métodos de ação inversa (inspirados de certa forma em Hitler); e já obtiveram, na Tchecoslováquia, o êxito que os anima a prosseguir nesse rumo. No excelente romance de Richard Condon, de que foi extraído este filme, tentam os comunistas o lance mais difícil, definitivo – daí a atmosfera concebida pelo diretor John Frankenheimer ser, inteligentemente, semelhante à de uma narrativa de science-fiction. (De passagem: se em vez da Casa Branca, o alvo dos comunistas fosse Brasília, o estilo mais adequado seria o neorrealista).
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No prólogo, ainda a guerra da Coréia, uma patrulha americana é capturada; a traição, num simples close-up do guia e intérprete coreano (Henry Silva). Os títulos, a seguir, inscrevem-se sobre uma Dama de Ouros. De cerca de 5.200.000 combatentes, apenas 77 foram julgados merecedores da Medalha de Honra do Congresso, tão importante que generais têm de prestar continência a quem a ostenta – como mostra a câmera ao focalizar no aeroporto o tenente (Laurence Harvey) que, segundo todos os sobreviventes da patrulha, dirigira com excepcional bravura a fuga dos prisioneiros do campo de concentração comunista. Cenas diretas, curtas, como numa sucessão de flashes, transmitem de imediato a base familiar do herói que regressa; a mãe (Angela Lansbury), antes mesmo de beijá-lo, orienta a propaganda do marido senador; ao padrasto macartista (James Gregory), opõe-se intransigentemente Laurence, também estendendo a hostilidade à mãe dominadora e possessiva; por isto, mal acaba de ser condecorado, aceita o cargo de assistente de um comentarista político, adversário de seu padrasto, fixando-se em Nova York.
A narrativa se abre, a seguir, em várias pontas, que confluirão pouco a pouco para um centro dramático e político de alta, impressionante tensão. Numa das pontas, Frank Sinatra, companheiro de Harvey na guerra e no campo de concentração, e agora a serviço do Pentágono. Começam com Sinatra as suspeitas sobre a legitimidade do heroísmo que ele próprio testemunhou. Noites seguidas, o mesmo sonho – ou uma recordação? Neste sonho recorrente, ele vê Laurence estrangular um companheiro, depois atirar na testa do outro (o sangue respingando sobre imenso retrato de Stalin), sem um instante de vacilação, obedecendo como um autômato ao comando de um psiquiatra chinês. E, também tecnicamente, uma esplêndida sequência, com sucessivas tomadas de 360° – a cada volta alterna-se a imagem do anfiteatro como é ou como os prisioneiros já “condicionados” o veem: para eles, são inofensivas e monótonas oradoras de uma convenção de floricultura, em substituição aos personagens da imagem real: o psiquiatra chinês testando o robot humano ante uma plateia de psicólogos soviéticos exigentes e atentos. Um velho conceito – o de que o hipnotizador não consegue induzir o hipnotizado a praticar atos contrários à sua estrutura moral – é demolido sem deixar margem a dúvidas. O mesmo sonho, com a mesma insistência, persegue outro companheiro de Laurence, um cabo negro (James Edwards). A partir dessa coincidência e mais de suspeitas do que de uma interpretação científica dos sonhos, a trama de The Manchurian Candidate recebe o acúmulo de elementos insólitos em si mesmos ou por sua colocação numa complexa equação na qual entram brainwashing e hipnotismo, simbolismo edipiano, interpretação de sonhos – estes elementos psicológicos combinados com outros, sociológicos e políticos, numa fórmula livre e inédita, para uma história espantosa e absorvente.
A infiltração comunista, como a apresenta Frankenheimer, avança numa tensão de science-fiction. Roçando a fantasia sem se desligar jamais da realidade utilizada ou reajustada pela imaginação, a trama de The Manchurian Candidate não tem, em seu curso político, o aspecto de pesadelo orwelliano (1984). Mas, porque nos parece imediata, a narrativa é mais impressionante. Não se trata do furto da mente humana, como em Invasion of Body Snatchers/Vampiros de Almas, para o domínio da Terra por forças de outro planeta – ou do que este representa. Nem é mais o robot mecânico de tantas aventuras, hoje superadas, dentro dessa área ilimitada da science-fiction, que está “prevendo” os caminhos pelos quais marcha a nossa civilização. Aqui, um herói americano, em carne e osso, é o que os comunistas “devolvem” à sociedade inimiga – um robot humano, pronto a entrar em funcionamento a um comando telefônico que restabelece instantaneamente o transe e “controlado” pela Dama de Ouros, símbolo de sua fixação materna. Um homem sem obstáculo, capaz de matar a própria mulher na lua-de-mel, e sem memória – o agente inconsciente de uma conspiração comunista que progride pacientemente, utilizando o apêndice macartista (o senador Iselin, outro tipo de robot), a psicologia freudiana e o matriarcado americano na sua tentativa de assalto à Casa Branca.
A habilidade da trama, a engenhosa lógica de The Manchurian Candidate está no jogo das antíteses, na utilização pelos comunistas da psicanálise, ciência banida por decisão do partido como reacionária e deletéria; e na escolha de um senador macartista, medíocre e ridículo (julga-se um novo Lincoln, chega a caracterizar-se como o abolicionista num baile à fantasia), fazendo-o seu candidato secreto à presidência da República. Tudo isso é arranjado e visualizado pela direção de John Frankenheimer com imaginação e violência.
Correio da Manhã (31 de maio de 1963)

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Os Desajustados, por Antonio Moniz Vianna