O Colecionador, de William Wyler

O acumulador é vítima de sua própria prática: de tanto aprisionar coisas, colecionando, termina ele próprio aprisionado. Não consegue mais sair de seu círculo vicioso. Fecha-se nos domínios que criou para seus objetos, suas peças sem vida. No caso do protagonista de O Colecionador, borboletas mortas conservadas em vidro.

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Ele quer mais, quer concretizar seu grande feito em um abrigo transformado em gaiola: aprisionar uma mulher para tê-la como deseja, submissa. É alguém que ama e espera ser amado, ainda que pareça absurdo a não ser por seu próprio ponto de vista. Infantil, o psicótico não pode viver fora de seus domínios; é um ressentido, um impotente.

A menina em questão é livre. Ele observa-a de seu veículo, segue seus passos até um pub em que a mesma conversa com outro homem, seu possível caso amoroso ou apenas um amigo. Para o colecionador, não se trata só de acumular animais mortos ou meninas presas; o que o incomoda profundamente é o comportamento de sua vítima.

O criminoso prefere a lagarta grudada à superfície, o casulo ainda mais. A borboleta – a transgressão – nasce para ser contida. Sua vítima é estudante de arte e, a certa altura da vida no cárcere, empresta ao algoz O Apanhador no Campo de Centeio, para ele uma obra tão sem sentido quanto os quadros de Pablo Picasso. O colecionador mostra aversão ao espelho distorcido que a arte produz, com seus seres e coisas em outras formas.

Ele gosta da beleza da morte, a falsa beleza que o aprisionamento proporciona. Colecionar, no fundo, é isso, diz o diretor William Wyler, com roteiro de John Kohn, Stanley Mann e Terry Southern (não creditado), do livro de John Fowles: a crença de que algo pode viver para sempre enquanto se cultua e se multiplica a morte.

Freddie Clegg (Terence Stamp) não suporta o universo “descolado” e intelectual dos estudantes de arte no qual vive sua vítima, a bela Miranda Grey (Samantha Eggar). Por muito tempo ele foi invisível à moça: encabeçou a história do “perdedor” que desejou a mais bela da escola; no ônibus ou pela rua, a mesma nunca lhe deu bola, nem um mero olhar.

Para tê-la, só tomando à força. A prisão é a velha capela subterrânea de sua propriedade, comprada com dinheiro da loteria. No passado, o local serviu a católicos perseguidos na Inglaterra; em outro contexto, encontramos outra forma de autoritarismo, agora individual. Difícil não reparar na divisão de classes que potencializa o ressentimento dele, a distância dela, a dificuldade de conexão – a despeito de todos os problemas de Freddie.

O filme de Wyler levanta muitas questões. Acerta na caracterização viva de Stamp, alguém que quer tanto e ao mesmo tempo parece nos pedir tão pouco. É o ator ideal a essa personagem que começa como moleque no quintal, atrás de bichos pela grama, e termina como um maníaco perseguindo outra prisioneira, não mais uma estudante de arte.

Seu maior erro está na construção da personagem de Eggar, incapaz de representar o espírito livre da época, alguém que ainda acredita nas promessas do vilão e até sente pena dele. O que poderia ser um gesto de humanidade migra à tentativa de nos afagar, à posição da menina perfeitinha mais tarde comparada pelo vilão a uma prostituta.

Ele, que deveria ser reto, dono de tanta frieza, é o mais complexo. Curiosamente tem sentimentos, ainda que encontre argumentações rápidas para descartá-los. Com Stamp, quase entramos na mente do psicótico, do solitário impossibilitado de enxergar na arte o gatilho necessário ao incômodo e à reflexão, ou apenas à beleza peculiar.

(The Collector, William Wyler, 1965)

Nota: ★★★☆☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
Infâmia, de William Wyler

A Mulher do Tenente Francês, de Karel Reisz

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