22 filmes sobre sociedades doentes

A serpente já havia atravessado a membrana do ovo quando Fritz Lang realizou M, o Vampiro de Düsseldorf, no início dos anos 1930. Sua sociedade doente dá voz a policiais e bandidos. A montagem paralela coloca ambos no mesmo jogo, pela alteração de planos, e nos dá a proximidade entre o submundo e os escritórios das autoridades.

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O submundo emergiria. Os dois lados tentam encontrar um assassino de crianças que desafia a polícia e atrapalha os negócios da bandidagem. No tribunal paralelo de Lang senta-se todo um país, o desejo de justiçamento, de vingança. O assassino, um Peter Lorre acuado, não resiste à loucura da massa: exposta, sua loucura apequena-se, é digna de pena.

Outro ovo fecundaria, décadas depois, sob a batuta de Ingmar Bergman: com produção americana, seu O Ovo da Serpente imagina a Alemanha dez anos antes da ascensão nazista, momento em que o povo comia carne de cavalo para sobreviver e o dinheiro valia o grama que pesava. Os autoritários sempre se aproveitaram dos momentos de fragilidade.

Michael Haneke mostra o germe do nazismo em uma vila retirada, às portas da Primeira Guerra Mundial, em A Fita Branca. O que o povo apartado, com seus próprios costumes, faz em momentos de tensão também pode ser visto em A Presa, de Nagisa Oshima. Na Argentina controlada pela Ditadura Militar e retratada em Azor, o autoritarismo alimenta-se e produz suas ramificações em salas fechadas, com padres e empresários.

M, o Vampiro de Düsseldorf, de Fritz Lang

O Ovo da Serpente, de Ingmar Bergman

A Presa, de Nagisa Oshima

A Fita Branca, de Michael Haneke

Azor, de Andreas Fontana

O próprio Fritz Lang retornaria à fúria social em seu primeiro filme feito na América, justamente com o título Fúria. Justamente a ele, fugido do nazismo, caberia essa representação do que a turba é capaz, o povo caipira, unido, disposto a esfolar um homem acusado de um crime que não cometeu – tema que retorna no inesquecível Consciências Mortas. A mesma turba que descobre sua cegueira e quer o corpo do maníaco de O Mensageiro do Diabo, a mesma que, derrotada na Guerra da Secessão, volta para matar os ianques que cruzam sua cidade no exploitation Maníacos.

Fúria, de Fritz Lang

Consciências Mortas, de William A. Wellman

O Mensageiro do Diabo, de Charles Laughton

Maníacos, de Herschell Gordon Lewis

Relacionam-se, todas essas personagens americanas, com os fanáticos religiosos que abraçam o pastor que crê nas próprias manobras, que enriquece à base da fé alheia em igrejas improvisadas sob tendas no ótimo Entre Deus e o Pecado, do questionador Richard Brooks. Seu Elmer Gantry, vivido por Burt Lancaster, é a face acabada do negócio da fé, da expressão de poder, pronto para caçar os prostíbulos que ele próprio frequentava.

Na América profunda, a sociedade doente expressa-se na prisão de um professor que ensina a Teoria da Evolução de Darwin. É o ponto de partida de O Vento Será Tua Herança, elogio ao progressismo à contramão do obscurantismo resistente. No tribunal,  no “julgamento do macaco”, o advogado de Spencer Tracy duela com o promotor de Fredric March.

Pequenas ou grandes cidades, com ou sem paredes visíveis, deixam ver a violência e o culto às armas. A América aparentemente acolhedora ganha aparência teatral, aspecto cru, às vezes amador, na visão de Lars von Trier em Dogville – onde todos se enxergam; e a aparente cidade pacata, da bela escola com seus belos alunos, ganha espaço em Elefante, sobre o massacre de Columbine, no qual dois meninos armados praticam uma chacina.

Entre Deus e o Pecado, de Richard Brooks

O Vento Será Tua Herança, de Stanley Kramer

Dogville, de Lars von Trier

Elefante, de Gus Van Sant

A transformação de uma sociedade carrega contornos de ficção científica no ótimo Vampiros de Almas, quando o medo dos soviéticos chega ao auge: os alienígenas nascem de casulos vegetais plantados no fundo das casas de uma pequena cidade americana. A história com ares de distopia termina como a visão de um homem louco, em uma delegacia, tentando ser ouvido – o homem que ainda pode enxergar, como os protagonistas de Fahrenheit 451, 1984 e Eles Vivem. Todos sobre o autoritarismo, o do Estado ou o do mercado, contra nossa liberdade de pensar.

A doença social, em Eles Vivem, oculta-se nas propagandas, no lixo despejado diariamente em nós pelas redes de televisão. Com um óculos especial, seu herói ainda consegue enxergar os alienígenas que representam o establishment. Um pouco como os espíritos que, pela tecnologia, na emergente internet, encontram um canal para se infiltrar e levar seus solitários consumidores de conteúdo ao suicídio em Kairo.

Vampiros de Almas, de Don Siegel

Fahrenheit 451, de François Truffaut

1984, de Michael Radford

Eles Vivem, de John Carpenter

Kairo, de Kiyoshi Kurosawa

De volta à Alemanha. Outra vez em um vilarejo de camponeses que, aos poucos, revelam-se deformados. Brutos, abusadores, ignorantes armados. Todos atravessam a câmera de Peter Fleischmann em Cenas de Caça na Baixa Baviera. Lembram os homens que encaram o professor recém-chegado ao vilarejo onde vive a namorada em Sob o Domínio do Medo, o intelectual que precisa apelar à violência para sobreviver.

Em outra sociedade, com outros valores, o conservador policial de O Homem de Palha será a vítima perfeita: não consegue compreender os outros e os outros pretendem engoli-lo. Será servido vivo às chamas, aos olhos de todos, como troféu. Sociedades assim normalizam o que chamamos de crime ou loucura. E nem chegamos a torcer pelo policial – personagem sem graça. Ao perfeitinho, acima de qualquer suspeita, haverá sempre uma lâmina apontada; ao professor acusado de pedofilia, julgado criminoso pelos outros, haverá também uma arma apontada, um rifle, para lhe mostrar que a suposta paz, em A Caça, é ilusória.

Cenas de Caça na Baixa Baviera, de Peter Fleischmann

Sob o Domínio do Medo, de Sam Peckinpah

O Homem de Palha, de Robin Hardy

A Caça, de Thomas Vinterberg

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

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