O dono do bar interpretado por Bill Murray desliga a televisão quando as notícias mostram os problemas dos americanos na Guerra do Vietnã. Os “heróis nacionais” levavam a pior durante o conflito. Segundo ele, chamado pelos rapazes que frequentam o bar de “coronel”, imagens como aquelas não deveriam ser transmitidas, pois rebaixam a confiança das pessoas.
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Ele usa ainda outro argumento curioso em Operação Cerveja, disponível no catálogo da Apple TV: será que as pessoas estão realmente dispostas a assistirem cenas de sangue enquanto acompanham o telejornal, na hora do jantar, em suas salas de estar? O dono do bar é um nacionalista, um conservador, militar que lutou na Segunda Guerra Mundial.
É o tipo que levanta a bandeira na frente de seu comércio todos os dias. Em um deles, coloca ela a meio mastro, em respeito a um soldado morto, rapaz do bairro. Como ele, alguns frequentadores do bar têm dificuldades para aceitar a derrota e, sobretudo, a besteira do envolvimento no Vietnã – sempre sob a desculpa de “combater o comunismo”.
Conhecemos de perto essa mentalidade. O protagonista de Operação Cerveja também se deixou levar por ela – até o dia em que encheu sua mochila com latas de cerveja e resolveu ir sozinho para o país em guerra, a muitos quilômetros do seu. Não é soldado. Foi para o Vietnã em gesto solidário, para entregar cervejas aos amigos no campo de batalha. Em suas andanças, descobre a verdade sobre os americanos em terreno asiático e o rastro de sangue produzido pela morte de inocentes, entre eles mulheres e crianças.
A história é real. O diretor Peter Farrelly às vezes recorre ao tom cômico e se esforça para conferir ao filme um verniz trágico. Nem precisava: as atrocidades falam por si só. Em um dos momentos mais fortes, o protagonista Chickie Donohue (Zac Efron) depara-se com uma criança vietnamita em uma estrada de terra. A criança fica em choque ao ver um americano. Ele não sabe lidar com a situação. O que poderia ser um momento de grande tensão dramática é estragado pelo uso da trilha sonora. Música no lugar errado.
Sempre que precisa elevar o drama, Farrelly volta a câmera ao rosto de Efron, o “bebê chorão”, o rapaz inocente – só não mais angelical por causa do bigode – que vê passar por seus olhos a loucura de uma nação, a sua, e a sanha imperialista que ela carrega.
Uma das cenas finais de Operação Cerveja é ambientada no bar. Em casa, Chickie encontra-se com o coronel. Um dos aprendizados que traz na bagagem é que as imagens do Vietnã, para o bem ou para o mal, precisam ser mostradas. Incômodas, elas representam a verdade que alguns reacionários embriagados pela bandeira não gostam de encarar.
O dono do bar e todas as mentiras contadas sobre o Vietnã fizeram-me voltar a Corações e Mentes, premiado documentário de Peter Davis. Seu título é retirado de uma fala de Lyndon B. Johnson: “a vitória final dependerá dos corações e mentes das pessoas que vivem lá”. E quem são elas, em sua quase totalidade? Gente simples que perdeu entes queridos, que teve suas aldeias destruídas, crianças que tiveram os corpos queimados por napalm. À frase de Johnson contraponho uma de Davis: “se o primeiro infortúnio da guerra é a verdade, o último é a memória”. Corações e Mentes é um documento histórico.
Publicado originalmente no Jornal de Jundiaí em 19 de outubro de 2022.
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

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Boa tarde, amigo. Se você puder, gostaria que postasse resenhas de filmes da Ilustrada (Folha de São Paulo), escritas por Adilson Laranjeira, Leon Cackof, Amir Labaki e Sérgio Augusto; anteriores a outubro de 1987- a partir de quando assinei esse brilhante matutino. Quantas você publicar melhor, ok? Muito obrigado pela atenção e um forte abraço.