Kafka, de Steven Soderbergh

A soma de imagens, em uma passagem específica, explica o filme todo – e todo o mal que envolve o mundo de Kafka (Jeremy Irons). É o momento em que ele vê o corpo de seu amigo, coberto, saindo pela porta do necrotério e, em seguida, no escritório em que trabalha, um carrinho com pilhas de documentos fazendo o mesmo movimento. A morte física do homem encontra equivalente na massa morta de papéis.

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Steven Soderbergh leva a esse equivalente o labirinto de sua personagem: o homem que assiste a esse duplo movimento espreita a morte, esmagado pelo espaço de documentos em que se encontra, pelo escritório de portas, gavetas e mesas intermináveis, de gente engravatada, ao preto e branco, sempre atenta a cada movimento seu.

Kafka é também sobre o escritor a quem dá nome, na pele de um Jeremy Irons de rosto assustado, aparência jovem, a descortinar os problemas do universo ao redor – entre o local em que trabalha e o castelo que nunca adentrou. Saberá ele, mais tarde, que não só o escritório, mas tudo o que consegue alcançar é produto dos que vivem no castelo.

Kafka escreve pouco ao longo do filme. Uma ou outra pessoa que cruza seu caminho elogia seus escritos. Colocar pensamentos no papel é sua forma de escapar – ou de representar as coisas como são. Seu universo ao redor espelha sua obra, forma como vê um mundo entre guerras, a Praga fria, às sombras, saída de um filme expressionista.

O pequeno herói assustado quer descobrir o que aconteceu ao seu amigo que não apareceu para trabalhar. Kafka observa sua mesa vazia, vai ao seu apartamento atrás de informações, desconfia do que pode ter ocorrido. Ele, Eduard, foi perseguido e assassinado por dois homens – um silencioso e bem vestido, o outro aos gritos, descontrolado, com parte do crânio raspado e cicatrizes – depois de seguido pelas ruas e vielas da cidade.

O tom de filme policial logo se impõe. Soderbergh quase escorrega em suas andanças; se não perde o controle é porque tem consciência de que seu filme depende mais da estética de terror do que do movimento policialesco, mais do gótico do que da aventura. Soderbergh, com roteiro de Lem Dobbs, faz uma homenagem ao grande escritor ao lançá-lo à sua própria ficção, distante da cinebiografia convencional.

Kafka, o homem, serve-se de sua essência, ou seja, de seu mundo perverso de aprisionamento, incertezas e paranoia. Após se aproximar de um grupo de revolucionários do qual seu amigo morto era parte, termina tragado – um pouco por suas forças, um pouco por tudo que o cerca e o rende – ao caminho do castelo. A chave do enigma está no interior desse local, em alusão à obra que o escritor deixou inacabada.

O cineasta ousa descortinar o castelo. Uma vez em seu interior, o mundo ganha cores: a reserva de realidade espraia-se nesse ambiente que controla o mundo lá fora; o real pertence ao castelo onde cientistas e burocratas tomam decisões sobre nossas vidas. É o sistema, o laboratório, a cela da tortura, o telescópio voltado ao nosso próprio crânio.

Em suma, é o sistema totalitário, o camarote com visão ao palco do teatro de fantoches, a sala que o protagonista de 1984 ousa invadir para descobrir que nada há do outro lado além de punição. Kafka não detona o sistema; ele apenas enxerga a verdade, além de explodir uma bomba em uma das salas do castelo, ao lado do laboratório em que o cérebro de uma cobaia – depois o olho – são projetados em um teto convexo e de vidro.

De volta de sua aventura, Kafka vai ao escritório, à sua prisão, aos assistentes irritantes – na verdade, agentes infiltrados para vigiá-lo – que se movimentam o tempo todo e nada produzem. Parecem saídos de uma comédia muda da Keystone. Ao chefe em sua sala, interpretado por Alec Guinness, Kafka diz que acreditava que aquele dia pudesse ser diferente. “Por que razão hoje deveria ser diferente?”, questiona o outro.

O que há de pior no sistema é sua repetição, o que nos faz voltar à passagem-chave em montagem paralela: o cadáver equivale à pilha de documentos. O homem foi reduzido ao estado em que se torna código, arquivo e repetição, peça de um sistema burocrático, uma máquina que não querem que enxergue. Só querem que a obedeça.

(Idem, Steven Soderbergh, 1991)

Nota: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
Malina, de Werner Schroeter

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