Malina, de Werner Schroeter

O labirinto da escritora divide-se entre o prazer e o desespero. O primeiro leva ao segundo, incontornável, incompreensível como parece ser. Na sua origem estão as dores da infância, o pai abusivo, as cartas que precisa enviar, a estética que não pode ser descrita.

ACOMPANHE NOSSOS CANAIS: Facebook e Telegram

Em uma aula, a certa altura da navegação proposta por Malina, a escritora aborda o silêncio de Wittgenstein sobre a estética, que não pode ser explicada pela palavra. Revolve-nos outra vez em seu labirinto, sobre o qual, um pouco perdidos, precisamos questionar: do que trata esse grande filme de Werner Schroeter, adaptado da obra de Ingeborg Bachmann?

Do interior da artista, certamente. Depois, de sua relação estranha com a estética, com sua estética, com esse cinema reproduzido em fúria e pura entrega, nesse desajuste infinito do criador com suas criações. Para começar, da escritora com Malina, sua personagem, seu companheiro, seu marido, seu confidente, algo como um vício inseparável.

No limite entre a imaginação e o que há de mais real (por paradoxal que pareça), Schroeter concede-nos o íntimo, a desgraça idealizada na pele de uma mulher, depois de uma atriz, de seus cenários, seus sonhos e suas angústias. O desespero de ser e não ser, de não se definir enquanto tudo o mais parece definido: seu outro, seu duplo, é Malina.

Ela própria confessará: a personagem-título não é, como parece, meramente secundária. É seu retrato, talvez seu superego, seu ponto de consciência em uma vida feita aos pedaços – e cujos mesmos pedaços, agora postos ao chão, por todos os lados, entre cômodos em chamas, obriga sua reposição, seu recalque, o eterno retorno ao eu que não se compreende.

Ao falar sobre a estética como algo que não pode ser descrito, a escritora fala de seu próprio interior. Mais ainda, segundo Schroeter: fala sobre a estética dos sonhos que o cinema – talvez apenas o cinema – seja capaz de conceder. A arte como produto do interior cindido, repleta de caminhos sem saídas, de questões que seguem, até o fim, suspensas.

A protagonista é interpretada pela grande Isabelle Huppert. Seus gritos, logo no início, dão o grau de seu desespero. A câmera circula-a enquanto embala cartas; persegue-a enquanto foge, mais e mais, a seu próprio casulo. Malina (Mathieu Carrière) talvez seja sua criação masculina para suportar a perda do pai autoritário (Fritz Schediwy), aquele que simbolicamente a matou quando criança, ao lançá-la do prédio.

O mesmo pai que – de novo simbolicamente – induz-nos a pensar não somente no passado da personagem, mas também no da própria nação. Em momento interessante, ele veste uma farda nazista. É o autoritarismo em pessoa, a febre que se recusa a passar, aquele mata a criança presa à lembrança da mulher: ela própria, ceifada, pelo seu criador.

A escritora quer existir. Procura a si mesma. Olha o espelho e, através deste, crê na própria vida. “Sempre preciso ter a certeza que existo, mesmo que seja por um espelho”, reflete. Em suas saídas, ganha a companhia de outro homem, um amante (Can Togay), e a cada pequena saída o que poderia ser apenas peça do cotidiano ganha um sentido maior.

Na companhia do amante, vai ao cinema. Na tela ao lado, à frente, uma animação. A escritora volta ao seu interior, a uma nova camada, a uma história de época em que se torna uma princesa, em que o príncipe é seu próprio amante. Malina, em sua própria inexistência, insiste em recobrá-la de sua vida, de seus problemas, do fogo que ganha espaço em seu apartamento.

Nada há de real nesse filme senão seu todo, sua essência. Malina, o companheiro, lê enquanto a escritora caminha com a criança (ela) entre os corpos nus, em clara repressão às liberdades, aos desejos e descobertas. Ao que parece, a protagonista está presa ao corpo de um homem (sua personagem), vítima de outro homem (o pai) que insiste em assombrá-la.

(Idem, Werner Schroeter, 1991)

Nota: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
12 grandes filmes sobre escritores e seus universos delirantes

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s