Stanley Kubrick, por Carlos Heitor Cony

Um filme, segundo Buñuel e Fellini, é uma sucessão de imagens. No caso específico do cinema, é uma sucessão de fotos. Daí que um dos maiores cineastas de todos os tempos foi antes de tudo um fotógrafo, com início de carreira na revista Look, basicamente uma revista de fotos. Stanley Kubrick nunca deixou de olhar a realidade e a fantasia sob a perspectiva de uma câmera, imóvel ou em movimento. Seu preciosismo cênico foi decorrência dessa maneira de encarar o cinema.

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Fotos movimento contam uma história. Pedem acessórios como diálogo e música. Transformar um fotógrafo em cineasta é ser exatamente o oposto de um paparazzi: é evitar o flagrante e buscar um conteúdo que seja ao mesmo tempo fundo e forma. Em muitos sentidos, Kubrick foi o cineasta autêntico da sétima arte.

Não se atreveu a filmar ideias próprias. Com exceção de seus primeiros filmes experimentais, quando ainda trabalhava na Look, ele foi buscar em autores emblemáticos do nosso tempo, como Arthur C. Clarke (2001: Uma Odisséia no Espaço), Anthony Burgess (Laranja Mecânica), Stephen King (O Iluminado), Vladimir Nabokov (Lolita), Arthur Schnitzler (De Olhos Bem Fechados, ainda não exibido), o ponto de partida para o núcleo principal de sua obra. (Fez ainda maravilhosa incursão ao clássico quando filmou Barry Lyndon, de Thackeray).

Além da história, Kubrick soube dar importância cênica à música, tornando-a personagem do filme e não um enfeite. Foi o caso do genial achado de Danúbio Azul e Assim Falou Zaratustra, que se tornaram trilha sonora da era espacial inaugurada no século 20. Outro achado relevante: uma das cenas mais cruéis de Laranja Mecânica é centrada (e não comentada) em Singin’ in the Rain, quando formou-se o consenso sobre o melhor filme musical de todos os tempos. Outro exemplo foi o final de Doutor Fantástico, o famoso balé de bombas atômicas destruindo o mundo ao som de We’ll Meet Again, a canção que os oficiais da RAF cantavam quando partiam para enfrentar os ataques aéreos durante a Batalha da Inglaterra.

Esses detalhes mostram a complexidade de cada filme e de cada cena na obra de Kubrick. Certo que teve predileção por temas violentos, mas a violência kubrickiana, paradoxalmente, era a manifestação de um pacifismo curioso: foi a forma que ele encontrou para condenar a guerra (Glória Feita de Sangue, Doutor Fantástico, Nascido para Matar), a opressão (Spartacus) e a própria violência.

Fora de dúvida que seu maior filme foi 2001. Com ele, deu uma dimensão transcendental, quase teológica, a um gênero que antes não passava de um subgênero. Mas os verdadeiros kubrickianos preferem a fase experimental do jovem fotógrafo da Look, que nos deu dois clássicos do cinema noir: A Morte Passou por Perto e O Grande Golpe.

Seu Lolita até hoje é polêmico. De minha parte, colocaria a sua versão, na qual o próprio Nabokov colaborou, como o ponto mais obscuro e perfeito de sua obra. Tendo como subproduto a antológica atuação de Sellers.

Revista Manchete (“O fantástico Kubrick”; 13 de março de 1999)

Veja também:
Providence, por Orlando L. Fassoni

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