À Beira da Loucura, de John Carpenter

O protagonista e sua companheira, rumo a uma cidade inexistente, discutem realidade e ficção. Ele é um detetive, um cético que trabalha para empresas de seguro, um especialista em desvendar fraudes. Ela, uma editora de livros com um sucesso nas mãos. Ambos tentam compreender a histeria em torno de um tal Sutter Cane, escritor de sucesso.

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Ambos conectam-se ao mundo desse escritor e não sabem ao certo, em dada altura de À Beira da Loucura, o quanto estão cravados no coração da insanidade que a obra – o livro, depois o filme; as histórias fictícias, depois as narrativas que tomamos como verdadeiras – pode causar. No fundo, diz John Carpenter, a partir do roteiro de Michael De Luca, vivemos todos um delírio coletivo; são os loucos os verdadeiros sãos.

Controlado ao extremo, cheio de dúvidas, o detetive John Trent (Sam Neill) tem seus motivos para duvidar do que ocorre ao redor. Ele não tem coragem, ainda, para continuar o rasgo no cartaz do novo livro de Cane, seguir a cisão que já teve início. Isso significaria, na representação proposta, depois concretizada, olhar seu próprio interior.

Trent tenta ser o que sempre foi: o homem com fé na materialidade, o homem do mercado a quem alguns poderosos recorrem para recuperar dinheiro. Seu diálogo com um golpista que colocou fogo no próprio imóvel faz pensar em Jack Nicholson no início de Chinatown: é preciso sempre de alguém para dizer o que os outros não querem ouvir.

Trent faz seu trabalho com retidão, é o chato que Carpenter delicia-se em demolir nesse filme de terror e paranoia, nessa grande obra sobre o quanto transformamos a ficção em realidade e o quanto levamos a sério as histórias impossíveis que crescemos ouvindo dos mais velhos. Para louvá-las e perpetuar suas forças, criamos igrejas e templos.

O último livro de Cane desapareceu junto com ele. Uma onda de gestos tresloucados toma o mundo. Quem lê seus livros termina perturbado. Trent é chamado para encontrar o homem e sua obra. Ou apenas a obra, pois o grande tesouro da editora – a empresa que tem à frente, com Charlton Heston, a cara dos negócios americanos – precisa ser segurado.

Na companhia de Linda (Julie Carmen), Trent termina na pequena cidade americana fora do mapa. É desse pequeno berço acolhedor – de seu hotel aconchegante, de sua rua principal com bares e pequenos comércios, de sua grande igreja com imagens sacras – que é liberado o mal que pode terminar com a vida na Terra, espécie de vírus gestado por Cane.

O escritor esconde-se justamente na igreja. Escreve as linhas finais de sua obra. É para lá que Trent precisa ir, depois de se ver sozinho, preso, no interior de um confessionário. Seu pecado é sua descrença, ou sua crença apenas no que aprendeu a acreditar, como em Deus. Acreditar em Cane e em sua ficção é se ver como um louco entre outros. Eis a batalha.

“Realidade é o que dizemos um ao outro ser a realidade”, observa Linda, no interior do carro, rumo à pequena cidade. “A loucura e a sanidade podem facilmente trocar de lugar se os loucos se tornarem a maioria. Você se acharia trancado em uma cela pensando no que aconteceu com o mundo”, arremata, como se soubesse – e sabe – o destino de Trent.

Ao enxergar o universo de monstros de Cane, Trent encontra o caminho para seu velho mundo e descobre que nada mais é como antes, e que muita coisa sequer existe (como Linda). Ao terminar de rasgar o cartaz do livro anterior para encontrar o do posterior, desvenda também seus demônios e sua fraqueza: o descrente, filho das grandes metrópoles, do capitalismo que tudo precisa segurar, é a vítima perfeita. Encara seu oposto, depois se transforma nele: primeiro um mendigo, depois um louco.

Em qualquer caso, Trent estará à margem. E verá, nos instantes finais, o filme de sua própria vida: ele descobre ser o protagonista do livro de Cane, à medida que todos os seus passos eram o avanço das palavras, capítulo a capítulo, página a página. Em poder do livro, Trent tenta destruí-lo; preso a ele, não consegue mais sair de seu labirinto.

Carpenter faz uma crítica genial à nossa tendência a acreditar na ficção e se deixar tragar a ponto de enlouquecermos sem perceber, protagonistas das histórias feitas para nos aprisionar. Em suma, uma crítica à religião e à inclinação cega aos seus deuses. Somos seres dependentes de fábulas, desesperados quando nos descobrirmos sozinhos em uma cela de hospício ou em uma sala de cinema que projeta nosso reflexo.

(In the Mouth of Madness, John Carpenter, 1994)

Nota: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
Não! Não Olhe!, de Jordan Peele

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